Bem-vindo a bordo – Texto de Lucius de Mello

“Tenciono passar muito tempo na fazenda assim que

chegar e espero na volta para cá trazer muito assunto

brasileiro. (…) Não pensem que essa tendência

brasileira em arte é mal vista aqui. Pelo contrário.

O que se quer é que cada um traga contribuição de seu

próprio país. Assim se explicam o sucesso dos bailados

russos, das gravuras japonesas e da música negra.

Paris está farta da arte parisiense.”

Tarsila do Amaral, dezembro de 1923.

Você tem fome de Arte? Então não deixe de provar deste prato: Tarsila do Amaral. A musa do modernismo e uma das criadoras do movimento antropofágico pode ser saboreada com tâmaras e temperos turcos, iguarias do oriente, receitas francesas, condimentos típicos das Minas Gerais e, claro, especiarias irresistíveis típicas do cardápio caipira. Afinal, Tarsila nasceu na fazenda São Bernardo, em Capivari, interior paulista, no dia 1o de setembro de 1886.

Não é exagero afirmar que, como se fosse a janela da cozinha de uma daquelas quituteiras de mão cheia do interior mineiro, pela janela do ateliê de Tarsila também saíram aromas e perfumes que deixaram rastros coloridos sobre as telas da artista. Os quadros de Tarsila enchem os olhos, mas, principalmente, conquistam o olfato.

Vamos, então, deglutir e saborear Tarsila, tal qual ela e o marido Oswald de Andrade sugeriram aos artistas brasileiros ao criarem o movimento antropofágico.

O movimento pregava que deglutíssemos a Arte européia e, a partir disso, criássemos uma Arte com uma identidade mais brasileira.

“Depois de três meses que passei no Oriente, Turquia, Grécia, Armênia, Palestina, Egito, Chipre, Rhodes, depois do contato mais íntimo com a arte oriental, lembro-me de que, ao voltar a Paris, achei as suas vitrinas, na sua maioria, feias pelas suas decorações falsas, porque nem tudo que se faz em Paris é bom, como muita gente ainda pensa. A falsidade e o desejo evidente de originalidade me chocaram profundamente.”.

Essas palavras foram escritas por Tarsila depois da viagem que fez ao Oriente.

Assim como essas anotações, outras cartas e bilhetes, escritos pela artista enquanto esteve fora, podem ser vistos e lidos, gratuitamente, na exposição Tarsila Viajante, que fica até o dia 16 de março na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Também estão expostos a mala que ela costumava levar os chapéus, as passagens dos vapores nos quais cruzou os oceanos Atlântico e mediterrâneo, 109 desenhos e 38 óleos sobre tela que marcaram a carreira de Tarsila. Entre eles, o mais famoso, Abapuru (imagem acima), pintado em 1928, que foi generosamente cedido à exposição por seu atual proprietário, um colecionador particular argentino.

Chamada carinhosamente pelo marido Oswald de Andrade de “a caipirinha vestida de Poiret” e filha de um abastado produtor de café, Tarsila foi uma animada e, muitas vezes, solitária viajante entre os anos de 1920 e 1931.

Também passou longas temporadas em Paris para estudar Arte. Mas a cada dia que conhecia o trabalho dos mestres e artistas estrangeiros mais se convencia de que queria criar uma pintura própria com as cores da sua infância.

“Como agradeço por ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando.”

“Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado... Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes, conforme a mistura de branco.”

O gosto pelo popular se desdobrou nas pinturas religiosas, como Anjos, Religião brasileira e Romance, bem como em Feira I .

E nessa busca pelo próprio umbigo, não faltou estímulo de um dos seus melhores amigos, o poeta Mário de Andrade. Numa das cartas que escreveu à amiga, que ainda vivia em Paris, Mário aconselhou: “Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem”.

A procura por assuntos brasileiros se intensificou a partir de 1928, quando Tarsila mergulhou nas imagens de seu inconsciente, provenientes das histórias de assombrações, lendas e superstições ouvidas na infância. Surgiram então pinturas e desenhos antropofágicos, paisagens habitadas por seres fantásticos e vegetação exuberante. Era uma terra povoada de animais, como sapos, tatus, capivaras, cobras, e seres proto-humanos, fortemente ligados a uma natureza túrgida e sexualizada. A negra e Abaporu são alegorias da mulher e do homem que geraram os filhos desse Brasil mágico, denso e silencioso, onde o céu arde ao Sol poente e a terra se aquieta à luz d’A lua. Feminino e masculino se complementam em Antropofagia – imagem que, conforme indicado pelo título, mescla elementos e funde simbologias anunciadas previamente em A negra e Abaporu, com as quais completa uma tríade.

Mesmo circulando por um espaço de no máximo 300 metros quadrados, o visitante da exposição poderá viajar o mundo com Tarsila do Amaral. E mais que isso: poderá compreender melhor o desenvolvimento da Arte e a contribuição que nossa artista-viajante deu para a concepção de um ideário moderno brasileiro.

Como afirmou Garcia Resende, no jornal capixaba Diário da Manhã, em julho 1929, “Diante da pintura de Tarsila a gente fica a pensar se o Brasil foi descoberto mesmo ou se foi pintado por ela”.

Lucius de Mello é escritor e jornalista, foi finalista do Prêmio Jabuti 2003 na categoria reportagem/biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro – editora Objetiva. Pesquisador do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação - do Departamento de História da USP, lança em junho A TRAVESSIA DA TERRA VERMELHA - romance histórico que conta a saga dos judeus alemães que se refugiaram no norte do Paraná para escapar do nazismo.Lucius de Mello é escritor e jornalista, foi finalista do Prêmio Jabuti 2003 na categoria reportagem/biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro – editora Objetiva. Pesquisador do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação - do Departamento de História da USP, lança em junho A TRAVESSIA DA TERRA VERMELHA - romance histórico que conta a saga dos judeus alemães que se refugiaram no norte do Paraná para escapar do nazismo.

E-mail: luciusdemello@uol.com.br

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