A máscara de Fany

Às sete, quando a claridade do dia já se dissipava em meio aos sobradinhos grudados da rua estreita, Mademoiselle Fany ergueu-se da cama, quase num bote, como alguém prestes a perder um horário importante. Foi à janela e com os dedos pequenos alargou os vãos entre as lâminas para olhar embaixo. Havia ainda um silêncio bem próprio daqueles instantes entre a tarde e a noite. Um ou outro pedestre, feito sombra, circulava pelo calçamento vazio. Um alívio passageiro a assaltou antes que ela novamente se aborrecesse com o atraso. Tirou os olhos do movimento lá fora e entregou-se a um banho não muito demorado. Então, dentro de um robe de chambre, ocupou-se de seu apronto.

À frente do espelho ovalado, Mademoiselle Fany compunha, com a pele branca, cabelos aloirados, lábios bem desenhados e sua face robusta, um típico retrato renascentista. Admirou-se por um momento, hesitando sobre o reconhecimento à sua beleza, como geralmente o fazem as mulheres para, enfim, estarem certas dela. Depois, endireitou os largos quadris sobre a banqueta forrada com veludo escarlate. Na mesinha grudada à parede sob o espelho, enfileiravam-se, em perfeita arrumação, objetos femininos de maquiagem e perfumaria. Antes de tocar qualquer um deles, entretanto, ela abriu com extremo zelo a gaveta central.

Desde que chegara, há dois anos, nenhuma desordem, por mínima que fosse, notara-se naquele quarto. Duas criadas, contratadas apenas para manter as dependências limpas e organizadas, eram proibidas de entrar ali. Com a permissão de Madame Sofia, suas chaves somente ela carregava. Mas esse capricho justificava-se pelo caráter de seu propósito, escancarado apenas intimamente e de certa forma àquela altura, quando suas mãos delicadas, ainda sem os anéis alugados à casa, roubavam do fundo falso da gaveta central uma arca em miniatura, na qual dormiam notas de dinheiro graúdo.

Jamais Mademoiselle Fany, nesses entremeios a que muitas vezes são afeitas as mulheres, objetara contra o intuito que sempre a movera naqueles últimos anos. Reta e convicta de sua retidão, havia também naquele intento uma força maior, que sempre pode ajudar a superar eventuais fraquezas e oscilações de caráter, o que decididamente não era seu caso. Se sua deliberação indicava um norte determinado a ponto de planejar minuciosamente o que para muitos consistiria em extenuante sacrifício moral, seu mais intenso sentimento andava a salvo das agruras que pudessem assomar-lhe porventura.

Feitas e refeitas as contas, uma onda de emoção, que ela também fazia questão de conter, teimava em subir-lhe pelas entranhas, fazendo-a contorcer-se sobre a banqueta e notar-se ruborizada através do espelho que a aguardava pacientemente. O dinheiro atingira o montante planejado há tanto tempo. Sem ter ainda iniciado sua pintura, permitiu-se, dentro de seu ar circunspecto, um efêmero soluço que acompanhou, coerente, os olhos levemente marejados. Nisso, bateram-lhe à porta, o que a fez retroceder ainda mais em sua preparação.

Sem sobressaltos, e com a desenvoltura que lhe era peculiar, devolveu o invólucro com o dinheiro ao esconderijo, trancando a gaveta em seguida. Enquanto pediu que aguardassem um instante, cingiu à cintura o robe de chambre, escorregou as costas das mãos pelas pálpebras, aprumou-se sobre as chinelas tão lisas quanto o cetim, e foi atender. Era a própria Madame Sofia quem estava ali, plantada debaixo de um dos lustres coloniais do corredor de elevados pés direitos, com um ar de deboche sagaz incrustado na face aplainada pela base e pelo pó quase róseo. Mademoiselle Fany admirou-lhe o rejuvenescimento. Antes de dormir a tarde toda, tinha-a visto pelos corredores feito uma velha, tal a face enrugada e sardenta. Mas agora, ali, nem seria possível lembrar-se de tal semblante.

- Oh! Perdoe-me, Sofia, por fazê-la esperar.

Sem cerimônia, Madame pôs-se para dentro. Enquanto a anfitriã fechava a porta atrás de si, girava em torno do próprio corpo, como quem se surpreendia com algo.

- Fazia tempo que eu não entrava em seu quarto, querida!

Em seguida, tomando para si uma intimidade à qual a outra mostrava-se pouco afeita, sentou-se na beirada da cama, fitando Mademoiselle com um sorriso curto.

- Eu estava começando a me arrumar – disse-lhe Fany.

- Ah, agora sou eu quem me desculpo por atrapalhá-la. É que já vim antes, mas parece-me que você descansava.

- Não, não...de maneira alguma, você não atrapalha em nada. Eu só terei que ser mais rápida hoje.

Mademoiselle Fany disse aquelas palavras e logo arrependeu-se. Embora não tivesse a intenção, pareceram-lhe ter saído irônicas. Um pensamento ruim percorreu-lhe então. Há dois anos, tratava Sofia de maneira a não se prejudicar ou aos seus planos. E ali, logo em sua última noite, parecia estar cometendo uma pequena indelicadeza, que poderia ainda trazer-lhe algum problema. Para corrigir o que achava ter se tratado de uma inconveniência de sua parte, emendou logo um convite para uma bebida, ao que a outra aceitou, aparentemente sem notar sua preocupação.

- Você se importa, Sofia, se enquanto conversamos eu me adianto?

- Oh, não, não, querida! Faça, faça... Seria bom observá-la ficar ainda mais linda!

Embora ainda pairasse em meio aos seus confusos pensamentos o receio de ter contrariado a outra, Fany também procurava esquivar-se de maiores delongas. Dali a pouco, arremataria o propósito de dois longos anos, e queria garantir que tudo corresse dentro da mais absoluta normalidade, assim como ocorrera até então. A idéia de desvencilhar-se do Senhor Arthur, de seus maus cheiros, de seus braços macilentos, de seus olhos baços e de seus lábios frios que impregnavam o hálito azedo, essa idéia feliz recolhia-a a uma espécie de êxtase que ela não podia dividir agora, especialmente com a Madame, que, copo à mão, dizia algumas frivolidades mal ouvidas por Fany. Mas, recuperando a concentração, Mademoiselle foi tomada por um novo desassossego. As ninharias ditas em tom vago pela outra pareciam reter certas intenções – o que se espera dos ditos rodeios. Um frio súbito trespassou-lhe a boca do estômago. Ela procurou livrar-se da inquietação:

- Você sabe, Sofia... você sabe de minha vida. Não posso dizer que sentirei saudades. Eu seria hipócrita com você, o que não pretendo. Mas sempre vou pensar em sua acolhida com gratidão.

- Madame Sofia sorveu o último gole e depois disso levantou-se, deixando o copo sobre a mesa. Quando ela andou pelo quarto sem dizer palavra, um aperto no peito fez Fany contrair-se, disfarçando ao ajeitar o robe de chambre sobre as pernas. O silêncio absoluto demorou segundos, mas houve tempo suficiente para Fany prever coisas ruins. Assim mesmo, tentou afastar aqueles tormentos. Buscou um dos cosméticos e começou a espalhá-lo suavemente pelo rosto, ao passo que através do espelho assistia à aproximação de Madame Sofia, em cujo semblante acomodava-se um meio sorriso.

- Bem, Fany, eu tenho algo a dizer-lhe e é preciso que seja agora...

Quando a encontrou, no início da tarde, Fany aludiu ao último dia na casa, ao que Madame nada comentou, reservando-se apenas ao mesmo sorriso amarelo de canto de boca. Só agora Fany enxergava estranheza naquela reação indiferente. A base estava já repartida no rosto, pronta para receber a fina camada de pó de todas as noites, que ela começava a providenciar. Virou-se:

- Há algum problema, Sofia?

A pergunta representava apenas uma última frágil defesa de Fany. Nem ela mesma poderia imaginar outra coisa. Nisso, ao recordar-se dos odores do Senhor Arthur, teve náuseas. Borrifou nas mãos gotas de um dos perfumes. Não suportava mais aquele suspense:

- Se há alguma coisa, me diga, por favor, Sofia...

Madame tomou-lhe pelas mãos, como uma miserável das ruas, sua face encerrava motivo de comiseração:

- Querida, os negócios se complicaram nos últimos meses. Há compromissos que não pude cumprir e que agora me jogam na cara.

A essas palavras, emendou-se uma comprida lamúria, ao longo da qual Fany enregelou-se, esperando pelo pior. Ao final, a outra pediu-lhe um empréstimo. Sabia de suas pretensões, mas não lhe restava saída, a não ser recorrer às amigas da casa. Madame largou-lhe as mãos, que caíram sobre as pernas como duas pedras de gelo. Dois anos! O tempo passara lentamente para ela. O sacrifício que ela própria impusera-se configurava-se tão árduo! Virou-se para o espelho e viu-se como se, num átimo, decorressem vários anos. A expressão de sua face fugia aos seus domínios. Sentia desvanecer aos poucos as forças que a mantinham senhora de si desde o início. Conceder qualquer tipo de empréstimo àquela altura significava abrir mão de tudo. O dinheiro, escondido na gaveta central, garantia-lhe condições para voltar sem nada dever a quem quer que fosse. E havia seu projeto. As privações daquele longo período valeriam a pena, então. Mas não se fizesse um empréstimo que lhe roubaria pelo menos mais um ano.

A máscara com a base e o pó estava quase completa. Desconcertada, Fany encarou Madame Sofia:

- Não posso... Não posso...Minha vida depende disso, Sofia, você sabe...

- Se não pudermos recorrer umas às outras, a quem poderemos? – conjeturou a outra em tom de desabafo.

Fany levantou-se, era preciso fortalecer sua recusa, mas ao mesmo tempo não deveria passar-se por ingrata ou algo assim:

- Não há como conseguir esse dinheiro? Talvez num banco, Sofia?

Madame pareceu não a ter ouvido. Seu rosto expressava certa decepção, não com Fany ou com alguma das outras, mas com a própria vida. Mademoiselle percebeu-lhe a resignação. Seus temores aumentaram. Sabia que aquela conversa não poderia mais acabar bem. Assim, ouviu:

- Eu pensei que pudéssemos contar umas com as outras, minha cara. Você sabe, quando se está aqui, quando se passa por aqui nunca mais as coisas podem ser iguais ao que eram antes.

Fany tomou aquelas palavras como uma ameaça, uma séria ameaça. Desesperou-se:

- Como assim? O que você diz, Sofia?

A outra endureceu a conversa decididamente:

- Você acha que pode sair limpa daqui? Acha que um bom banho pode apagar tudo? Arrumar suas coisas e ir embora? Nós não costumamos nos abandonar umas às outras, minha cara, isso nunca! Ninguém pode sair vencedora se deixa para trás uma amiga perdedora, sabe? As pessoas se revoltam, fazem coisas horríveis. Por mais longe que você possa ir, sempre haverá uma dúvida, compreende? Estes nossos nomes, Mademoiselle, Madame, estas coisas passageiras ficam para sempre, esta é a verdade...

Abruptamente, Mademoiselle deixou-se desmoronar sobre a banqueta escarlate. Olhar ausente, enfiou a mão entre os seios e de lá tirou uma pequena chave. Sem mais segredos, abriu a gaveta central. Dali a pouco, Madame contava nas mãos uma razoável soma em dinheiro, o suficiente para aplacar a fúria de suas ameaças:

- Um ano mais, um ano menos, querida, o que há de ser? Vou lhe pagando aos poucos. Quem sabe, até antes disso?

As notas restantes foram devolvidas à pequena caixa e esta colocada novamente no fundo da gaveta central. Fany aquietou-se. Seus músculos retesaram-se. Talvez os olhos deixaram de piscar naqueles instantes, e a boca não salivou. Depois, como um pedreiro à frente da construção, rematou a pintura, concluiu a máscara. Já eram quase nove. Mais um pouco e o Senhor Arthur estaria sentado numa das poltronas da ampla sala de convívio, no térreo. Fany, então, ocultaria como sempre seu asco, liquidaria sua repulsa, meteria na face o brilho de um sorriso e veria, do alto da escada, quando os olhos dele flamejassem ao encontrar os dela, revelando uma felicidade indescritível. Nisso, conforme descesse os degraus e se aproximasse dele, viria à tona a frustração de não mais se tratar de sua última imolação. Recairia sobre sua alma o peso do desalento e a certeza de que dali em diante se redobrariam seus sofrimentos. Mas nem assim Fany abandonaria sua idéia. Nem assim ela se desviaria.

***

A imagem que ilustra o conto é o quadro "Vido no Bordel", do pintor paranaense Orlando Mattos (1917-1982).

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