Folião por acaso – Texto de Reinaldo Chaves

Pacífico sempre morou na avenida Sete. Um lugar que já foi melhor no
centro de Salvador. Quando ele era moleque não tinha tanto carro e
camelô. Era até mais charmoso, com calçamentos de paralepípedo e
postes de ferro. Até o carnaval, com blocos de rua, parecia ser mais
amigável. Não que Pacífico desfilasse, sua religião não permitia, mas
gostava de ver os amigos fantasiados fazerem papel de palhaço na rua.
Ele não confessa, porém sentia até uma ponta de inveja daquela
alegria.

Mas o que era amistoso e simpático foi ficando chato e irritante. Os
foliões de antigamente se contentavam apenas com uma semana de
fevereiro para se alegrar. A justificativa muito antiga para a festa,
se esbaldar em alegria para depois fazer penitência na Quaresma,
também agradava Pacífico e ele não ligava muito para a algazarra
noturna. Até que inventaram de botar um carro para puxar os foliões.

Era muito barulho para ele. O povo cantando ainda vá lá, mas
equipamento de som no último volume era demais. Ou melhor, o volume ia
aumentando todo o ano sem limites. E quando a bagunça passou a ter
início já em janeiro ele encarou com seriedade a possibilidade de se
mudar. O pior é que gostava da casa, morava lá há mais de 30 anos,
primeiro com os pais, depois a mulher e os dois filhos. Resolveu então
quando possível sair de viagem, nem que fosse apenas para outro bairro
nos dias de carnaval dentro ou fora de época.

Trabalhava numa repartição pública e o chefe que gostava de uma farra
dava folga para todos quando tinha festa na rua ou pelo menos que o
paletó de cada um desse expediente para não dar muito na vista.
Pacífico estava satisfeito, passou um ano longe do carnaval. Trancava
a casa e ia passar uns dias com primos no interior ou com amigos da
igreja em Salvador mesmo. Só voltava quando o sossego já tinha
retornado, o máximo que encontrou foi uns bebuns caídos na sarjeta.

Já tranqüilo e esperando repetir o mesmo esquema no próximo ano que
chegara, foi surpreendido com a algazarra logo na primeira semana de
janeiro. Era demais em todos os sentidos. Começaram a botar mulheres
quase peladas em cima do carro de som e ele flagrou seu filho caçula
babando na calçada por uma negra de coxas grossas e bunda grande que
rebolava com as músicas profanas. De imediato deu um safanão na orelha
do rapaz e no dia seguinte exigiu de seu chefe uma dispensa naqueles
dias de Sodoma e Gomorra baianos. Cabisbaixo o mandatário respondeu
que era impossível. Mesmo morrendo de vontade de ir para a rua se
esbaldar, ele havia recebido ordens de cima proibindo folgas. O novo
governo começara uma linha dura com quem resolvesse enforcar o serviço
para aproveitar o chamado aquecimento pré-carnavalesco.

Sem ter para onde ir, Pacífico chegava todo o dia do trabalho com o
povo se espremendo na calçada, pulando e gritando. Ele fazia jus ao
nome de batismo em sentido amplo, era um verdadeiro bunda mole. Mesmo
não aprovando aquilo tudo por dentro, ia para a casa caminhando, pedia
com educação e paciência para os foliões darem licença e levava na
esportiva os pedidos para ele entrar na bagunça feitos por quem ia
encontrando no caminho. "Não posso, acordo amanhã cedo, obrigado,
estou cansado, minha religião não permite, desculpe", eram suas
respostas pacíficas.

Essa via-crúcis foi se repetindo e o povo começou a achar graça.
Criaram apostas para ver quem conseguiria primeiro fazer aquele crente
cair de boca no pecado. Logo descobriram seu nome e inventaram o
refrão: "Vem cá, Pacífico / Vem brincar com as mulher / Dançar sem
parar / E beber até ficar maluco". Sem palavras e vermelho ele saiu
correndo a primeira vez que ouviu isso. Todos caíram na gargalhada.

Ele passou a orar para isso terminar logo, mas só piorou. O cantor do
carro de som, que já apelidavam de trio elétrico naquela época, logo
sacou que a brincadeira fazia um baita sucesso e resolveu ele mesmo
cantar a música de Pacífico. Criou uma melodia e adicionou mais uns
versos. Pronto, nos finais de tarde, na hora que o correto funcionário
público voltava do trabalho, era possível ouvir sua música a muitos
quarteirões de distância.

Todos adoravam, cantavam junto, pulavam e balançavam a mão para o
alto. O pobre Pacífico estava resignado, caladão e deprimido. Não via
mais solução para aquilo e só esperava o carnaval terminar na sua rua.
Mas ele mal desconfiava de que de boca em boca aquela música estava
estourando. Outros trios elétricos de Salvador já tocavam sem parar
sua canção e um empresário esperto já tinha arranjado um cantor famoso
para gravá-la.

A coisa chegou a um ponto que algo inédito aconteceu numa manhã.
"Filho de uma puta", Pacífico berrou várias vezes sem dar nenhuma
importância para quem estivesse por perto em seu trabalho. Tudo porque
um rádio do escritório tocava "Cai de boca Seu Pacífico", o novo
sucesso do carnaval baiano que emplacava em todas as emissoras. Não
contente em xingar ele ainda atirou pela janela o rádio em plena rua
Guedes de Brito e saiu batendo portas sem falar com ninguém.

O agora irado Pacífico começara uma verdadeira cruzada para achar o
responsável por aquilo. Primeiro sacudiu pelos colarinhos o cantor que
azucrinava sua vida há mais de um mês na sua rua. Com sono e chapado,
mas assustado com aquele crente furioso, ele explicou rápido que
apenas tinha vendido a música para um empresário, Xiquinho Fontana. De
posse do endereço do esperto ele saiu em seu encalço.

A majestosa fachada da casa não o intimidou. Tocou a campanhainha e
pediu para falar com o empresário, que logo mandou avisar que não
estava, pois não o conhecia. Não contente Pacífico disse que ia
esperar o quanto precisasse. Outra desculpa foi dada de que o patrão
estava viajando, mas tornou a responder que ficaria no mesmo lugar e
pediria para a esposa trazer comida e um saco de dormir se precisasse.
Aí o tom engrossou e ameaçaram chamar a polícia. Pacífico comemorou,
disse que tinha muita coisa para contar sobre uso de músicas
indevidas.

Xiquinho, velho de vários trambiques, ficou preocupado quando lhe
contaram o que o maluco na frente de sua casa estava falando. Mandou
seu secretário conversar com o homem e saber o que queria. Ao saber o
que era percebeu que tinha sido passado para trás, o autor da música
tinha lhe garantido que o Seu Pacífico era um tio ranzinza dele que
não gostava de carnaval e tinha até morrido já. Puto da vida ligou
para confirmar a história com o compositor malandro e prometeu que na
noite de Salvador ele não ia tocar nunca mais.

Foi encarar o verdadeiro Pacífico e de cara ofereceu uma mixaria para
ele calar a boca e esquecer a história depois de assinar um papel
prometendo não entrar com nenhum tipo de processo. O homem irado
estava agora ofendido. Disse que era um funcionário público
incorruptível há mais de vinte anos e que não era tonto, sabia que seu
nome foi usado indevidamente e exigia que sua música fosse banida das
rádios. Xiquinho ainda tentou enrolar, dizendo que aquilo estava com
cheiro de safadeza, o Pacífico da música podia ser qualquer pessoa.
Firme ele respondeu que tinha muitas testemunhas na sua rua que viram
a música ser feita para ele.

Encurralado o empresário ficou manso. Primeiro ofereceu um whisky
para o agora convidado da casa, mas que prontamente foi rejeitado.
Depois aumentou sua oferta, uma, duas, três vezes e fez até o
impensável, ofereceu participação no lucro da música como um dos
autores da canção. Pacífico rejeitou tudo veementemente e já estava se
levantando para sair procurar seu advogado quando Xiquinho pediu, por
favor, para ele ficar mais um pouco.

Sem solução, já que aquele homem era diferente dos otários metidos a
esperto que ele subornava todos os meses, teve que improvisar. A lábia
começou com uma pergunta: a história da música era verdadeira e por
que ele não gostava de carnaval? Pacífico gostou da atenção para com
ele e contou tudo sobre sua casa e o percurso do carnaval na sua rua,
desde a simpatia até o ódio. Mentindo descaradamente, Xiquinho disse
que sentia muito por seus constrangimentos e que realmente alguns
foliões exageravam na dose não respeitando os evangélicos.

Mas aí para seu espanto o próprio Pacífico interrompeu a lorota e
começou a defender o carnaval. Disse que era uma tradição alegre da
sua terra, não queria nunca acabar com aquilo e disse que até gostava
de ver o povo feliz. Xiquinho viu logo uma oportunidade no ar e
resolveu arriscar. Prometeu tirar a música da discórdia do ar, mas
antes disse que queria levá-lo para sentir essa emoção da alegria do
povo. Convidou ele para subir num trio elétrico.

Ao ouvir isso Pacífico sorriu e disse um não quase sem convicção
nenhuma. Com mais uma insistida o empresário explicou que poderiam ir
naquela tarde mesmo, no momento que falavam já havia foliões na rua.
Era sem compromisso, ele podia ir lá e decidir na hora. Garantiu que
seria muito bem recebido, era um trio elétrico de amigos. Relutando um
pouco Pacífico foi para a bagunça. Estava de terno e gravata e no meio
da multidão foi sendo empurrado até chegar suado na escada do carro de
som.

Já no alto, muito tímido ele recebeu abraços e beijos de toda a
banda, que havia sido avisada do convidado ilustre. Quando o som
começou e o público respondeu também com muito barulho, era possível
perceber um leve sorriso nos lábios de Pacífico. Ele estava com os
olhos fixos para baixo, observando as pessoas dançando. Xiquinho,
próximo dele, fez questão de notar bem seu comportamento e viu que seu
pé esquerdo batia discretamente. Daquela vez nem as mulheres peladas o
irritaram. Ele estava feliz naquela festa e sentia-se também o centro
das atenções em cima do trio elétrico.

Xiquinho resolveu arriscar tudo e antes de começar a próxima música
cochichou uma ordem no ouvido do vocalista. O povo começou a vibrar
com "Cai de boca Seu Pacífico". O homenageado afrouxou o nó da
gravata, começou a sorrir mais e mais até dar uma gargalhada quando
ouviu e viu centenas de vozes cantando seu nome. O desejo antigo dos
foliões da avenida Sete parecia estar sendo realizado finalmente.

Depois da música o cantor teve a presença de espírito de apresentar
Pacífico para seu público, que foi ovacionado. Muito contente e já sem
paletó e gravata o homem de meia idade surpreendeu a todos pedindo um
bis da sua canção e dessa vez com ele próprio nos teclados. Pacífico
havia aprendido a tocar na igreja executando músicas gospels desde
criança, nem precisou de ajuda para seu primeiro show, como era músico
experiente e já ouvira sua música dezenas de vezes, ele havia
apreendido e decorado de ouvido todas as notas.

Foi um sucesso, muito melhor que o tecladista titular. O público
adorou sua performance e seu jeitão ingênuo. Coisa que Xiquinho não
era nem um pouquinho. Na mesma hora ele encheu a bola da nova estrela
do carnaval baiano e propôs shows diários para ele e a gravação de um
disco, lógico com a maior dos lucros para o empresário. Pacífico
estava no céu, ou melhor, no inferno das festas carnavalescas, mas
aceitou feliz. No dia seguinte, passou na sua repartição pública para
pedir demissão, se despedir e dizer que ia para a farra enquanto seus
colegas teriam que ficar ralando. E, claro, trouxe um novo rádio para
que ouvissem suas músicas todos os dias.

E-mail: reichaves@hotmail.com

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