Vozes do Deserto, de Nélida Piñon – Texto de Dudu Oliva

“Os contos das Mil e uma noites povoaram a imaginação de sem-número de leitores que, pendentes dos narradores, ansiavam para saber o que riria acontecer com Simbad e Zonaide e, com o mesmo fôlego curto, temiam pela sorte de Scherezade entregue ao capricho do mais cruel dos ouvintes.” ( escritor Alfredo Bosi)

Antes de falar sobre o romance que acabei de ler – Vozes do Deserto (Record, 2005), contarei brevemente uma lenda oriental – UMA FÁBULA SOBRE A FÁBULA.

Quando Deus criou a mulher, inventou a fantasia. Um dia, a verdade visitou um grande palácio, onde morava um sultão. Vestida de um véu transparente bateu na porta do palácio para falar com o sultão. " Sou a Verdade! Quero falar ao vosso amo e senhor" . O chefe dos guardas foi ao grão-vizir, disse que uma mulher quase nua queria falar com sultão. O grão-vizir não quis conversar com a Verdade: "A verdade quer penetrar nesse palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a verdade aqui entrasse? A perdição a desgraça nossa. Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!..." . O chefe do guardas disse para a Verdade que ela não podia entrar no palácio, "a tua nudez iria ofender o califa".

Quando deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a verdade persistiu na visita ao palácio. Cobriu as peregrinais formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores, e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras mulçumanas. Bateu novamente na porta. O chefe dos guardas perguntou quem era. Sou a Acusação. Ele foi ao grão-vizir. "Senhor, uma mulher desconhecida, com corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano. Chama-se acusação". O grão-vizir: "A Acusação! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao nosso amo e senhor!" . Depois, o chefe dos guardas disse para a Acusação que ela não podia entrar.

Quando deus criou a mulher, criou o Capricho. E a Verdade encheu-se do vivo desejo de visitar o grande palácio do sultão. Vestiu-se de riquíssimos trajes, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater outra vez à porta do palácio. "Sou a fábula". O chefe dos guardas falou com grão-vizir. "Uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicitada audiência de nosso amo e senhor. Chama-se Fábula!". O grão-vizir: "A fábula quer entrar neste palácio! Alá seja louvado! Que entre! Bendita seja a encantadora Fábula e que ela tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!" . E, abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou. Foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão.

Nélida em Vozes do Deserto mostra os bastidores dos contos das Mil e uma noites, que são histórias fantásticas inventadas e preservadas na tradição oral. Revela a mulher que está por de trás da visão mítica da famosa contadora de história da literatura oriental, Scherezade. Ela se comunica com o Califa com a sua habilidade de contar histórias. Almeja envolvê-lo numa teia de sensualidade através das palavras, para que não mate mais as suas esposas e nem ela mesma. A narrativa está na terceira pessoa e como se narrador estivesse a contar oralmente as aventuras da protagonista.

Scherezade tem como aliadas à irmã Dinazerde e a escrava Jasmine. Elas a ajudam no cotidiano do palácio e na elaboração das histórias. A personagem principal sempre se lembra da Fátima, uma antiga empregada que cuidava dela quando era pequena e que a ensinou a arte de fabular. Um lado está a força viril do Califa e o seu ódio por todas as mulheres, devido a esposa Sultana que lhe traiu com um outro homem, no outro está Scherezade com o dom da palavra. Ela faz o Califa se emocionar e se identificar com os personagens marginais, pobres e com as vozes dos povos nômades que vivem no deserto. "Scherezade aprende a sobreviver. As regras da vida não estão escritas. Cabe-lhe inventá-las a cada aurora". Ao decorrer da narrativa, a intimidade e as angustias da contadora de histórias, de sua irmã Dinazerde e da escrava Jasmine são expostas. Amor, respeito e inveja se misturas nas três personagens.

Sherezade quer ser livre como os personagens os quais inventa, não quer ser aprisionada. Como a Verdade da fábula possui a fantasia, a obstinação e o capricho. Alias como o povo de Bagdá e os nômades do deserto, que apesar das adversidades e capricho dos poderosos, continuam a fabular e a sonhar. Usam A PALAVRA para semear por gerações futuras seus mitos, lendas e costumes.

E-mail: dudu.oliva@uol.com.br

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