Dores nas costas

I

Outro dia, apareceu-me lá no consultório, pelo meio da tarde, um tal Silvério. Minha clientela geralmente é fixa, não por outra coisa, senão pelo detalhe de a minha agenda viver lotada. Para dizer a verdade, tenho consultas marcadas para os próximos seis meses. Por isso mesmo, quando surge algum novo paciente, é natural alimentar uma certa curiosidade. Contudo, quando ele entrou, ambos não pudemos evitar boas risadas. O fato é que já nos conhecíamos, embora não tivéssemos ligado nossos nomes às respectivas pessoas. Eu o tinha por Silva e ele me tratava por Doutor Juca. São esses os apelidos pelos quais costumam se dirigir a nós, inclusive no edifício onde moramos, coincidentemente no sétimo. Não era para rir? – “Então o nome do senhor é João Carlos? Puxa, poderia ser Joca, não é? “ Bem, claro que, em meio a outras risadas, expliquei a ele que aquilo era coisa de família, apelido dado pelo avô, enfim, esses pormenores de pouco interesse a este caso. Depois de a poeira baixar, a surpresa ficando para trás, passamos a conversar o que realmente cabia a um médico e um paciente.

- Mas, diga-me, Silva, isto é, Silvério, em que eu posso ajudá-lo?

- Pode continuar me chamando por Silva, doutor, por favor. Olha, quase que eu não consigo a consulta. Acho que a moça marcou porque não agüentava mais minha insistência. De qualquer maneira, eu agradeço muito. E vou procurar não tomar muito tempo. Ela disse que minha consulta é o que vocês chamam de “encaixe”, é isso?

- Pode ficar à vontade, Silva. Se a consulta foi marcada, meu objetivo é fazer o melhor pelo paciente, ainda mais por você, um vizinho.

- Bom, doutor, eu vim porque minhas costas estão em pandarecos. Agora até que está dando para falar e andar, mas tem hora que nem deitado é possível.

O Silva, um homem pelos seus cinqüenta e poucos anos, fazia terríveis caretas debaixo de um vasto bigode e procurava, sem conseguir, levar uma das mãos às costas, enquanto tentava explicar seu problema. Embora ali, à minha frente, ele estivesse aparentemente bem, suas queixas eram de arrepiar. Às vezes, parecia até exagerar. Eu procurei dar um desconto a esses exageros. Sei como é ficar sozinho num apartamento nesta idade. Assim como ele, também sou divorciado e divido meu espaço com vícios e neuroses implacáveis. Pensei: se ele não tiver com quem se lamuriar, o médico dele precisa suportar isso, afinal todo médico deve ter também uma predisposição a psicólogo. Então, levantei-me e pedi que ele tirasse a camisa e que se sentasse à cama. Antes de tratar especificamente de suas costas, eu precisava ver se tudo ia bem com ele em termos gerais. Depois de auscultá-lo, examinando sua respiração e seus batimentos cardíacos, constatei que a princípio suas condições não eram ruins, não havia indícios de pneumonia ou doenças que pudessem causar as terríveis dores que ele dizia sentir. Sentamo-nos novamente, para que eu fizesse o diagnóstico. Para isso, tenho por hábito conversar bastante com o paciente, analisar suas condições de vida, suas atividades físicas, incluindo aí a postura, enfim, gosto de verificar detalhadamente como vive a pessoa e, só a partir daí, começar a traçar prognósticos sobre a origem do problema.

- Você costuma praticar algum esporte, Silva?

- Olha, confesso que ultimamente estou meio paradão. O senhor sabe, sou representante comercial autônomo, mas tenho todas as visitas previamente agendadas e hoje em dia não me passam muita coisa. Nos dias em que visito os clientes, vou de carro, ou seja, sentado; chego ao local, espero sentado; entro para negociar, sou convidado a me sentar; volto sentado, chego em casa e me sento para ver TV ou para comer. Quando não saio para trabalhar, é pior, fico ainda mais tempo sentado. De vez em quando, desço para dar umas voltas, mas é pouca coisa...

- Você sabe que isso não é nada bom para a nossa idade, não é?

- A gente acaba se acomodando, só na hora em que as coisas se complicam é que se procura um médico.

- Não é só isso, Silva. Lógico que sempre é aconselhável consultar um médico, mas a prevenção também é fundamental. O sedentarismo é uma verdadeira arma apontada para nosso coração, nossa cabeça, nossa próstata, enfim, para nossa vida.

Estávamos conversando assim, o que julgo importante para o processo de conscientização do paciente, quando de repente fiz a pergunta que originou esta história.

- Bem, mas há quanto tempo você não procura um médico, hein Silva? Essa dor surgiu agora ou vem de longe?

- Não me lembro de ter ido a um médico nos últimos dez anos, pelo menos. Acho que a última vez foi para tirar a vesícula. Agora, essa dor, doutor, essa dor vem desde que eu acordei com o leão me pisando, faz uns três dias.

II

Por um instante, achei não ter compreendido a explicação de meu paciente. Permaneci calado, olhando para ele, e ele balançando a cabeça afirmativamente.

- Como assim? Não entendi, Silva.

Então, ele me fitou com bastante naturalidade e insistiu na justificativa.

- Eu não tinha essa dor, Doutor Juca. Começou segunda-feira, depois que o leão me pisou.

Aquele estágio de nosso diálogo exigia rapidez de meus neurônios. Sem demora, eu precisava avaliar as possibilidades que levavam meu paciente a agir daquela maneira. Se a princípio, eu imaginara tratar-se de uma brincadeira, nada mais indicava que assim o fosse. O Silva estava sentado diante de mim com expressão grave, a fisionomia do paciente que está em busca de respostas para seu problema. Procurei, então, ganhar tempo, analisar melhor sua justificativa para as dores nas costas, embora intimamente me sentisse constrangido por alimentar uma conversa assim.

- E como foi isso, Silva?

- Eu estava deitado de bruços. Só consigo dormir assim. É até engraçado dizer, mas eu sonhava com uma dessas lutas de sumô e tinha um japonês muito gordo sentado em minhas costas, eu não agüentava mais. Foi quando acordei com a pata do leão em cima de mim...

Poucos chegariam a uma conclusão diferente da minha: o Silva enlouquecera ou no mínimo tornara-se vítima de uma perturbação mental. Imediatamente, me vi na obrigação de ajudá-lo, mas eu precisava pensar num modo sem dizer a ele minhas suspeitas. Sabia-se lá o tipo de reação de meu paciente diante de uma notícia dessa. Pedi a ele para deitar-se novamente e examinei suas costas, enquanto planejava o melhor a ser feito. Por fim, receitei-lhe alguns relaxantes musculares e marquei o retorno para dali a uma semana, prazo suficiente para encontrar uma saída. Eu conhecia alguns bons psiquiatras e recorreria a eles para aconselhar-me.

Passaram-se dois dias. Curioso e preocupado, procurei ficar atento ao comportamento do Silva no edifício onde morávamos. Mas nessas quarenta e oito horas, não o vi uma vez sequer. Então, coisas terríveis começaram a atormentar-me. Ele teria piorado? Talvez tivesse sido um erro aguardar uma semana. Eu deveria tê-lo enviado a um psiquiatra na mesma hora. Fui ter com o porteiro.

- Você tem visto o Silva, do sétimo?

- Sim senhor, Doutor Juca. O Seu Silva saiu faz coisa de meia hora.

A informação tranqüilizou-me, mas apenas em parte. Quando encafifo com um problema, não sossego até vê-lo resolvido, principalmente quando diz respeito à minha responsabilidade profissional. À noitinha, ao voltar do consultório, minha intenção era esperá-lo na recepção ou, caso já tivesse chegado, procurá-lo em seu apartamento. Queria ao menos observá-lo de perto, constatar se sua perturbação havia progredido. Tudo isso, entretanto, tornou-se desnecessário. Logo ao entrar, encontrei o Silva deixando o prédio.

- Olá, Silva! Vai sair?

- Vou aproveitar a sexta-feira, doutor, tomar uns chopes com os amigos.

- E as dores nas costas? Você melhorou?

- Até que sim, doutor. Já estou quase bom.

Nisso, não sei dizer o motivo, quem sabe o alívio de perceber a normalidade em seu comportamento, fiz-lhe uma pergunta cujo teor de certa forma compeliu-me antes mesmo de concluí-la. Francamente, não sei de onde tirei aquela besteira, uma espécie de brincadeira de mau gosto.

- E o leão, você o viu outra vez?

- Acabei de descer com ele no elevador. Até logo, doutor, já estão buzinando para mim.

III

Está mesmo melhor, pensei. Quem tão rapidamente retruca com sarcasmo a uma ironia barata não deve estar assim muito louco. Bem, menos mal. Como faço todas as noites, cumprimentei o porteiro e me dirigi ao elevador, já fuçando em minhas coisas à procura da chave do apartamento. Nesse meio tempo, fui entrando no elevador, ainda com a valise aberta, até resgatar de lá o molho de chaves. Apertei o sete e fechei a maleta. Quando fui ajeitar meus óculos, dei-me conta de algo ao meu lado. Pus-me atônito: era o leão. Permaneci estático, a não ser pelo leve tremor de meus membros. Fixei o olhar no painel dos números. Estávamos no terceiro. Uma gota de suor deixou o couro cabeludo, atravessou a extremidade da sobrancelha, passou pelo olho, escorreu contornando o nariz, até ser capturada por minha língua seca. Passamos pelo quarto andar e chegávamos ao quinto, a luz no painel estava acesa. O elevador reduziu a velocidade. De través, percebi-lhe balançar a orelha e movimentar levemente a cabeça, como fazem os animais para expulsar os mosquitos. Por um instante, ameacei um berro, mas a garganta travada abortou qualquer possibilidade de som. A porta abriu-se no quinto andar. Ninguém do lado de fora. A porta fechou-se. Faltavam só dois. Mais alguns segundos e eu poderia finalmente respirar outra vez. O painel iluminou o sexto. O bicho levantou-se abruptamente. Nessa hora, senti-me um velho merecedor de piedade ao perceber a urina molhando-me por baixo das calças, até encharcar uma das meias. Deus, o senhor está aí? Aqueles míseros segundos, entre um andar e outro, serviram-me para abandonar cinqüenta e seis anos de ferrenha incredulidade. Pedi a Deus pela minha vida. Apenas não ajoelhei para evitar chamar a atenção de meu companheiro de viagem. Enfim, o sétimo. A porta escancarou-se. Como um robô, tentei andar sem mover-me demais. Pisei no chão do corredor e um segundo após, ouvi o elevador fechar-se atrás de mim.

Cambaleei até minha porta, com dificuldade encaixei a chave no tambor. Arrastei-me à sala, prevendo um ataque cardíaco, mas em vez de ligar para um hospital ou para o resgate, telefonei para o Corpo de Bombeiros. Minha voz quase não saía.

- É uma emergência, por favor. Há um leão no elevador de meu prédio.

Do outro lado da linha, um silêncio manteve-se por alguns instantes.

- Escuta aqui, engraçadinho: sua sorte é estarmos, exatamente agora, com problemas no sistema de identificação de chamadas. Vá procurar algo melhor para fazer, ok?

E desligou. Sim, havia um leão no prédio, passeando de elevador, e o sujeito dos bombeiros desligara o telefone na minha cara. Tentei respirar com calma, recuperar o fôlego. Fiquei sentado por aproximadamente dez minutos. Só então pude voltar a ser racional. Seria mesmo um leão no elevador? Eu não estaria perturbado com o caso do Silva? Embora fosse uma tamanha coincidência, se as neuroses dele eram capazes de levá-lo a imaginar-se com um leão sobre as costas, por que eu não poderia também sofrer uma alucinação semelhante? Bebi uma dose de uísque para relaxar. Depois, dei-me conta da roupa úmida de urina. Tomei um banho rápido, não tinha paciência para nada. Que absurdo aquilo tudo! Era preciso uma resposta, ou eu iria enlouquecer de verdade. Fui novamente até o corredor, chamei o elevador, a porta abriu-se. Nada. Entrei e apertei o T. Eu falaria com o porteiro, quem sabe ele tivesse ouvido algum comentário a respeito dessas visões, quem sabe outros moradores, uma alucinação coletiva? Em vez de descer, o elevador subiu. Foi até o último andar, o vigésimo. Ninguém à espera. Mas, quando a folha de aço começou a deslizar para fechar-se, percebi num relance algo estranho. Segurei a porta e saí ao corredor. O duplex estava aberto e de lá exalava um cheiro ruim. Nas pontas dos pés, dei cinco ou seis passos e com cuidado empurrei a porta, bem devagar. O cenário dantesco causou-me vertigem e tudo escureceu-se à minha frente. Escorei-me à parede para não cair. Tão logo recuperei-me, fui ao interfone e gritei por socorro. Dois seguranças subiram depressa e, então, chamamos a polícia.

Na sala enorme do apartamento, sobre os jogos de estofados, mesas, cadeiras e demais móveis, seguia-se um rastro de sangue e restos de corpos. Um dos quartos, o maior, abrigava uma jaula em praticamente toda sua extensão. Cerca de meio metro a separava das paredes, estas preparadas com uma forragem especial. Cuidados acústicos impediam a propagação de qualquer som, mesmo o rugido de um leão. A decoração, por sua vez, era fantástica. O pobre bicho preso certamente imaginava-se numa selva, tal a qualidade das pinturas. A investigação policial revelou o seguinte: os moradores do duplex, um casal de avançada idade, criaram o leão desde pequeno. Vários álbuns de fotos e vídeos foram anexados ao processo. Pelo jeito, acompanhar o crescimento e o dia-a-dia do animal configurava-se no grande divertimento dos velhinhos. Aliás, eles não tinham filhos e nunca recebiam visitas. Segundo os porteiros, quase não saíam, mas as encomendas chegavam constantemente, entre elas decerto muita carne para a dieta do leão. Quando os policiais certificaram-se do incrível acontecimento, os bombeiros e a defesa civil foram chamados, e os moradores, retirados. Passamos acordados uma longa noite. No fim, nem sinal do nobre felídeo. Simplesmente, ele desapareceu.

No dia seguinte, muito cedo, uma de minhas filhas veio visitar-me. Eu não avisara ninguém da família sobre o episódio. Situações desse tipo só devem ser explicadas pessoalmente. Por telefone, parecem trotes ou brincadeiras bobas. Ou, na pior das hipóteses, poderiam tomar-me como louco. Não foi essa minha reação a respeito do Silva? Bem, precisei repetir a história umas cem vezes para minha neta de seis anos. Mas o fiz com prazer, mantendo pelo máximo de tempo possível aquele brilho em seus olhos, o brilho provocado pela imaginação de ter o avô metido numa aventura parecida com os desenhos animados e os livros ilustrados de seu mundinho. Quando finalmente cansou-se, ela me olhou com toda sua inocência e perguntou onde estava o leão agora. Foi uma ótima pergunta. Onde estaria o leão agora? Na verdade, nunca o encontraram.

- Vovô, ele pode estar por aí, passeando na rua...

Muitas vezes ouvi dizer sobre os bons resultados da simplicidade diante do que se faz complexo. Não em raras ocasiões ficamos perplexos quando nos aparecem problemas graves e posteriormente descobrimos para eles respostas advindas de procedimentos banais. Pois bem. A solução encontrada por minha neta não é de todo descabida. Se a multidão passante destas nossas ruas apinhadas parece aperfeiçoar-se no exercício do isolamento, ignorando mesmo a própria essência de sua composição; se essa multidão adianta-se numa marcha a cada dia mais submissa aos interesses absolutamente individuais em detrimento do proveito comum; se ela é hábil no desprezo às suas beiradas carcomidas, por que, então, em seu seio não pode estar, incólume, o leão fugitivo do apartamento dos velhinhos? Ele devora uns e, por sua capacidade de intimidar, corrompe outros – os que seguem em frente, embotados, juntos e ao mesmo tempo sós, os que olham e não vêem. É lá que está o leão.

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