pôquer – Texto de Thiago Roque

entre fumaças, biritas baratas, alguns petiscos e muito clima noir, jogavam pôquer a dor, a solidão, o amor e a angústia.

já era praxe: todas as sextas, juntavam-se após o expediente para bater o carteado. cada um trazia suas preferências, rolavam algumas coisas de imprevistos – se fosse o caso, pediam pizza. o importante era a jogatina.

as apostas eram altas. almas em jogo.

a diferença é que os jogadores não se importavam em ganhar ou perder. naquela mesa redonda com toalha verde-musgo, o importante era se divertir.
ah, e eles se divertiam.

a dor, por exemplo, babava enquanto gargalhava ao perder 20 almas numa só jogada para a solidão. “esses aí já se acostumaram comigo. é melhor mesmo terem algo diferente para sentir”, falava a bastarda, enquanto a solidão (vestida impecavelmente com uma saia preta curtíssima, um top vermelho sangue de decote generoso e uma cruz prateada que marcava a fronteira entre os enormes seios) sorria de lado e já recolhia o prêmio.

a angústia já era mais prudente (mas, nem por isso, menos aventureira): se tinha uma boa mão, apostava as almas mais atormentadas; se blefava, colocava na mesa um possível suicida – a dor, via de regra, se deliciava com isso.

a solidão gostava de número – ironia ou não, é verdade. mas, se perdesse, cagava quilos: afinal, conseguir moeda de jogo não era ter que fazer empréstimo no banco a juros altos – sempre encontrava gente para trazer para o seu lado.

o amor, não: único macho na mesa, ele era mais vulnerável – e estúpido. apostava sem distinção: 30 almas por vez, 50, chegou a colocar 169 pessoas num blefe – e se fodeu.

amigos, via de regra, o amor tomava no cu.

depois, quando perdia, choramingava, exagerava na birita, fumava descontroladamente. ria como todo mundo – mas com um certo nervosismo. se apegava às almas, mas só percebia isso quando elas cruzavam a mesa verde-vusgo, dizendo um tchau amargo.

justo pra ele, que tinha a despedida como vizinha – e aquela vadia jogava o lixo no quintal dele.

com o tempo, o amor ficou viciado no jogo. E também na bebida. já não fazia mais a barba, os ternos eram cada vez mais raros, aparecia aos jogos amarrotado, cheio de olheiras. mas estava lá, sempre disposto a apostar todas aquelas almas, aquelas almas que ele tanto amava – mas que só descobria isso depois de elas caírem no decote da solidão (sim, a solidão percebia quando o amor blefava, era sua maior adversária).

enquanto isso, angústia e dor riam. ao amor, restavam as lágrimas.

quem sabe na sexta que vem.

E-mail: roque.thiago@hotmail.com

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