A menina e o calango

As cascas de uma outra hora ainda arruinavam, via-se bem assim nos joelhos descarnados, quando a menina, muito mirradinha, escorregou pelos dois degraus da porta da frente, arrancando-as de novo e fazendo vazar o sangue que sempre manchava os tijolos gastos. Esfregou as mãos com uma careta enfezada e guardou a dor para chorar mais tarde. Agora, não.

Espiou, curiosa, o bicho. Deu dois ou três passos adiante e, de pronto, um para trás. O bicho olhou para ela, num instante parou de bisbilhotar nas bordas do chiqueiro vazio, onde só um barro seco fedia. Sustaram os dois assim um tempo antes de voltarem às suas tarefas, ele à bisbilhotice e ela à admiração.

A velha chamava a cada pouco lá de dentro, não sabia a menina a quê. Nem tornava. Esticou-se com a barriga no chão duro e segurou o queixo com as mãos, só vendo. O bicho fuçava. Devagar, ajeitou-se mais para perto dele, dava mesmo para ver o couro verde e marrom, até um certo cheiro achou que era seu. O bicho fuçava. No começo, ele ainda voltava-se, desconfiado, na direção daquela criatura esquisita, remelenta e tudo. Aí, vai ver, habituou-se. Deu o rabo.

Por aí estavam a menina e o calango, quando num repente ela despistou, sacudindo-se nos trapos. O bicho, que fuçava, chispou para os lados do barro seco e malcheiroso. Enfiou-se num buraco qualquer e de lá ouviu as misérias do bruto roceiro.

O sujeito bramiu feiúras, ao passo que a menina procurou se apartar do desmerecido, mas não deu. Todo o quase nada dali era dele, devia-se a ele, vinha dele feito ela, não interessava nem que fosse debaixo de picumã, dele era, e só.

Naquele dia, pouco havia na tardezinha para se comer. O mingau rareava, dizia a velha. Decerto, não se tinha de onde. O tal se melindrou, abandonando à mesa a vasilha suja. A menina, então, aproveitou-se, levando o dedo até lá, para depois lamber com gosto a porção a mais.

De saída a esmo, o pai escancarava outras misérias, que isso que aquilo, ia achar uma caça, fosse mesmo um calango. Lambuzada, ela arregalou os olhinhos abatidos. No leito, atentou de noite, comprida que foi, à claridade duma daquelas luas.

Quieta, pensou no bicho. Depois, lembrou também do pai. Teve medo. Se pudesse, aquietava ainda mais, nem respirava, para não magoar o pai, para ele não pensar mais em coisas ruins.

De manhã, e também de tarde, a avó chamava, mas ela não vinha. Ficava lá, vendo o bicho, aquela cor bonita, uns olhos acesos. Sempre fuçando. Ela ria enquanto a beirinha do umbigo se desenhava na areia.

Noutros dias, o sujeito se pôs muito mais injuriado, cheio de brutezas, sacando da boca azeda a munição de tantas desditas. A velha cochichava para ela própria, dia após dia repisava os mesmos termos sem sentido. Até que não se tinha quase nada para a janta, e o pai se rebelou contra o mundo, desdizendo rezas e clamando pelo diabo, que poucas intenções teria de se meter ali. A lua esmaeceu devagar, só vinha agora a escuridão.

Nesta manhã de ontem, a menina foi para os arrabaldes do chiqueiro e espreitou. Esperou mesmo mais de quatro horas pelo bicho, sem sucesso. Lembrou-se dele fuçando no barro seco e fedorento, o couro marrom e verde, aquela boniteza. Avistou os quatro cantos do chiqueiro, toda esperançosa, mas ele não veio de jeito nenhum. Depressa, também sobreveio à ausência da companhia a imagem bruta do pai. Matutou. Matutou. O tempo correu, ela juntou o pouco que tinha nas idéias e logo se alarmou: avizinhou-se de seu coração em desespero a certeza de que haveria janta mais tarde.

Sozinha na terra quente, zangou-se contra tudo. Queria matar os dois de casa, bem dum golpe só, a enxada. Não teria sido assim o jeito do pai com o calango? Mas logo, desvigorada, deixou murchar a fúria e vir no lugar a melancolia, uma solidão desmedida.

Nisso, a velha chamava. Dum salto, a menina ergueu-se e desabalou no rumo da casa. Olhou para a avó e para o pai, para o fogo e para a mesa. Só havia um pouco de farinha, mais nada. Então, ela se pôs a rir - com o maior amor pelo mundo.

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