Sociedade de controle – Texto de Otávio Nunes

Dia desses, enquanto assentava caquinhos de piso no quintal de casa (trabalho cansativo, mas também assaz delicioso), lembrei-me de uma teoria de cunho anarquista que aprendi num curso de política na PUC, em São Paulo. É muito interessante: chama-se Sociedade de Controle. Baseia-se, segundo meu professor, no pensamento dos filósofos franceses Michel Foucoult e Giles Deleuse, ambos da segunda metade do século XX. Não os li, porque não me considero qualificado para leituras desta magnitude. Mas prestei máxima atenção às aulas.

A Sociedade de Controle começou a ser delineada a partir de 1950, mais ou menos. Antes, imperava no mundo a Sociedade Disciplinar. Estes dois tipos de sociedades nada têm a ver com capitalismo e socialismo, esquerda e direita, conservadores e progressistas, primeiro e terceiro mundo. Talvez tenha um pouco a ver, muito pouco, com Ocidente e Oriente. Já que estas duas sociedades evoluíram mais deste lado do planeta. Aliás, quase todas as ciências (principalmente humanas) que estudamos é sempre do ponto de vista ocidental, é a nossa herança greco-romana-cristã. Antes, vamos explicar rapidamente a Sociedade Disciplinar, para depois entender a de Controle.

A Disciplinar, do século XIX até meados do XX, era uma sociedade hierarquizada, na qual imperava, claro, a disciplina. Vamos pegar três exemplos: família, trabalho e escola. Na família, o pai era absoluto. Sua palavra era lei. Dirigia sua prole segundo seus princípios, raramente ouvia a mulher ou os filhos para tomar decisões. Ordenava o trabalho doméstico à mulher e planejava o futuro dos filhos (com quem iriam se casar, que
profissão teriam, etc).

No trabalho, o operário, principalmente o menos graduado, era totalmente subserviente. Não tinha direito de pensar sobre sua tarefa. Era obrigado a fazer conforme lhe mandavam, conforme a metodologia de produção adotada em cada época (o que hoje chamamos de tecnologia). Ou seja: o trabalhador era um apertador de parafusos, como no filme Tempos Modernos de Charlie Chaplin. O funcionário não raciocinava, eram seus superiores que pensavam por ele.

Quando mais cumpridor e disciplinado, melhor seria o operário. Na escola, mais ou menos como na família, o professor era senhor do conhecimento. Suas palavras, suas aulas, eram totalmente verdade. Os alunos não podiam contestar. Se houvesse problemas com algum estudante, este receberia castigos do mestre. Aluno bom era aluno calado. Percebe-se, então, que a Sociedade Disciplinar era autoritária. E, como em toda sociedade desta natureza, pipocavam aqui e ali ideais de libertação (políticos ou não), como sindicatos, partidos, movimentos (culturais, artísticos, científicos e intelectuais), organizações de todo o tipo. As minorias silenciosas queriam se fazer ouvir, por meios pacíficos ou
violentos. E eram reprimidas. Portanto, havia na Sociedade Disciplinar grupos de contestação ao Estado.

Mas as coisas mudaram. Vejamos os três exemplos acima, nos dias de hoje, quando impera a Sociedade de Controle. Na família, o pai já não é mais o senhor da situação (guardemos as devidas proporções, pois o ambiente familiar depende da instrução dos membros, da geografia e da classe social). Pois bem, esposa e filhos também têm voz, atualmente. São ouvidos em momentos de decisão. Os filhos, depois de maiores, fazem o que quer de seu
futuro profissional, namoram e se casam com que desejam, têm filhos fora do casamento, se separam etc. Não apenas os filhos, mas também os pais agem assim.

Aquela família tradicional (até que a morte os separe) é coisa do passado. A sociedade aceita e até a lei foi mudada para garantir os direitos de um filho fora do casamento, que no passado seria chamado de bastardo por todos e de ilegítimo pela lei. No trabalho, o funcionário mais valorizado é aquele que cria, pensa, inventa novos métodos de produção, contesta técnicas antigas. Hoje o trabalhador tem de ser criativo. Quanto mais inventivo, mais produzirá. Ele não é apenas um subalterno apertador de parafusos, é estimulado a criar. Deixou de ser mero cumpridor de ordens para ser influenciador de novos métodos de trabalho.

Na escola, o professor deixou de ser o sabe-tudo. Pode ser contestado pelo aluno. O estudante quietinho e tímido não é mais o preferido. Professores gostam de quem pergunta, duvida, suscita polêmicas etc. E ai do professor que ousar dar um cascudo no moleque. Pode até ser expulso da escola. A mãe vai reclamar para o diretor...

Viram? A sociedade antiga, a Disciplinar, era hierarquizada e autoritária. A de Controle é democrática (guardando as proporções). Na Sociedade de Controle o cidadão é convocado a participar. As minorias se organizam e conquistam benesses sociais e legais (ver negros, índios, deficientes físicos, mulheres, idosos, crianças, favelados, gentes de rua que ganharam direitos que antes lhes eram negados).

Hoje há partidos políticos de qualquer matiz ideológico (guardando as proporções, pois na Alemanha os nazistas são proibidos, por motivos óbvios) participando de eleições livres. No Brasil, há um comunista que é (ou foi) de linha stalinista, na presidência da Câmara Federal, o Aldo Rebelo. É o terceiro na linha sucessória. Isto seria impensável há mais ou menos 30 anos. O presidente Lula também é outro exemplo parecido. No mundo há outros
casos.

Hoje tudo (ou quase) é permitido. Estão ai as organizações não-governamentais (ONGs) de todos os tipos. Desde a preservação do mico-leão até o polêmico aquecimento global. O Estado não gosta de ONGs, dirá alguém. Não é verdade. Estas organizações, mesmo as mais rabugentas, são bem-vindas na Sociedade de Controle. Elas atuam em áreas que o Estado não tem mais condições de atender. São parceiras das autoridades.

Na Sociedade de Controle todos podem contestar ou concordar. Todos, provavelmente, serão ouvidos e terão liberdade para se expressar. Se algum grupo quiser fazer passeata, desde que não violente pessoas ou o patrimônio, terá ajuda até da polícia. Na Sociedade Disciplinar, provavelmente, estes grupos seria recebidos a cacetete.

Hoje, todos são convidados a participar, convocados pelo Estado para construir uma sociedade melhor. Não há quase contestação (no sentido revolucionário), pois todos são convidados a colaborar, são ouvidos, têm livre expressão e suas organizações estão fichadas legalmente. Ou seja: o Estado tem o controle da situação, por isso chama-se Sociedade de Controle. As autoridades têm a ficha cadastral de todos os cidadãos e suas
organizações.

Não há mais movimentos revolucionários, dispostos a mudar totalmente a sociedade, como houve no passado. Não há mais contestação ao Estado. Como contestar se você é convocado a participar? Por isso, falei no início que esta teoria é de cunho anarquista. Por favor, entendam a palavra anarquista de modo ideológico (ausência do Estado) e não, pejorativo (bagunça). Dizem alguns, que uma das únicas organizações no Brasil que foge ao controle
do Estado é o Movimento Sem-Terra. O MST não é partido político, pelo menos, ainda não. Não pratica a política formal (representativa), sua direção (ao que se sabe) não faz conchavos com autoridades. É um movimento de contestação que o Estado não convoca à participação.

Ao escrever este artigo sobre a teoria da Sociedade de Controle, procurei não fazer juízo de valor. Se este pensamento é bom ou ruim, certo ou errado, justo ou injusto, ético ou não, bonito ou feio, de direita ou de esquerda, revolucionário ou reacionário. Não sei. É uma teoria que procura explicar a sociedade em que vivemos. Acredite quem quiser. A propósito, o professor da PUC chama-se Edson Passeti. Ele pertence a uma organização (que ele garante não ser ONG) de cunho libertário e humanista.

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