Acaso de 25 anos

Num prazo de 25 anos de vida, tantas coisas são possíveis! E tantas outras, impossíveis! Dá tempo de crescer e mandar no próprio nariz. Ter um filho. Ter dois filhos. E mais até. Amar e odiar muitas vezes. Concretizar mil sonhos de épocas passadas. Frustrar-se com mais mil. Formar-se profissional. Comprar um carro. Trocá-lo por outro. Quem sabe, dois ou três. Trabalhar e perder o emprego, depois conseguir nova vaga, perdê-la também e recuperá-la um dia é coisa que acontece em 25 anos.

Também ocorre de se sofrer com perdas. Desesperar-se. Resignar-se. Achar que está pronto para o que der e vier. Descobrir que sempre falta algo. Fazer promessas. Cumpri-las e descumpri-las. Jogar tudo para o alto. Sair recolhendo os cacos dá para fazer dentro desse prazo.

Vinte e cinco são anos suficientes para ser amigo. Cometer traições. Dar banho em dois ou três cachorros de muita estimação. Dar banho em duas ou três mulheres de muita estimação. Dar banho em muitas mulheres de pouca estimação. Isso também é possível nesse tempo todo.

Desejar, debaixo da mais pura convicção, sair de casa e, depois, morrer de saudades. Quantos não vivem essa experiência em 25 anos? E brigar com o pai? Remoer-se com as besteiras que se avolumam nas costas? Escrever cartas ou e-mails que nunca deveriam ter chegado ao destinatário? Discriminar? Ser discriminado? Esperar que a vida melhore, desistir e renovar a esperança?

E mais: votar em três ou quatro presidentes que sempre se tornam decepções. Xingá-los. Acreditar que na próxima vez haverá um melhor. Lembrar-se do colega que não vê há uma década e esquecê-lo no minuto seguinte. Trocar o celular pelo menos umas dez vezes. Responder a uma das milhares de pesquisas de opinião pública. Achar que elas são forjadas. Ganhar na loteria, mesmo que uma ninharia qualquer. Animar-se com o aumento salarial previsto e gastar tudo antes de receber.

Bom, acho que esta lista pode seguir infinitamente. De todo modo, deu para se ter uma idéia. Quem nasceu há 25 anos certamente já passou por tudo isso, talvez mais, talvez menos, mas há de identificar-se com muitas das situações lembradas.

O caso é que há 25 anos (pasme: um quarto de século!) carrego algo que emprestei e não devolvi. Em 1980, uma professora de colégio emprestou-me o maravilhoso livro "Capitães da Areia", de Jorge Amado. Eu o li, guardei-o para mais tarde ler de novo e ele foi ficando comigo. Andei puxando o fio da memória e calculo que ele já tenha morado em nove ou dez casas, viajado para cima e para baixo nuns treze carros, entrado e saído de diversas malas e mochilas, subido e descido de diferentes estantes e prateleiras, sempre me acompanhando fielmente.

Nesse tempo todo, eu o reli em uma ocasião e o abri em várias outras para simplesmente relembrar trechos. Confesso que não me lembro quando deixei de considerar a possibilidade de devolvê-lo ao verdadeiro dono. Lembro-me apenas que, nos primeiros meses, havia um certo peso a incomodar-me a consciência. Recordo-me também de, mais tarde um pouco, pensar coisas do tipo: "puxa, mas já faz um bom tempo; com que cara vou devolvê-lo agora?"

Tudo bem, tenho a impressão de que uma idéia assim fazia parte dessas desculpas que, involuntariamente, criamos para não fazer o que não queremos. Essa crise de consciência, contudo, desapareceu um dia. E é desse dia que eu não me lembro. Quando terá sido o momento em que eu decidi ficar com o livro para mim? Acredito que jamais saberei a resposta.

Agora, entretanto, 25 anos depois, calhou de o livro chamar-me a atenção, desde a prateleira dos romances nacionais, que fica bem diante de mim enquanto escrevo estas linhas. Sim, acredite: um livro tem personalidade suficiente para, de onde estiver, chamá-lo às falas, se isso for necessário. E assim o fez este irrequieto "Capitães da Areia", talvez porque eu não lhe dê a devida atenção há um bom tempo, talvez porque, vai ver, bateu-lhe uma saudade incontida de seu antigo dono, minha professora de português.

De todo modo, o fato é que ao abri-lo hoje na página de rosto e ver, impresso, bem no alto da página, com tinta de carimbo, o nome dessa professora, tive a certeza de que muita coisa mudou em nossa relação, digo na minha relação com o livro. Acho que nosso casamento tornou-se monótono nestes últimos anos. Ele fechou-se para mim, eu quase não mais olhei para sua letrinha gostosa.

Essa triste constatação enfiou-me num dilema do qual julgo-me incapaz de livrar-me tão cedo. E não é outro senão este: devolvo o livro 25 anos depois? Eu poderia enviá-lo pelo Correio, envolvido num bonito papel de presente, com laços elegantes. A antiga mantenedora da obra desembrulharia o pacote sem compreender direito do que se trata, de onde viria um presente assim inesperado. Mil conjeturas passariam por sua cabeça. Nestes tempos malucos, ela poderia pensar até numa carta-bomba de algum ex-aluno inconformado com um zero na prova de conjugação verbal. Ou, quem sabe, ela imaginasse a revelação de um amor platônico. Mas o certo é que ao final, sobraria a saborosa emoção de um reencontro completamente inusitado. Acho que ela o encostaria ao peito e o sentiria pulsar de felicidade. Também acho que ela ficaria feliz. Então, ela tentaria descobrir onde tinha ido parar aquele livro perdido há tantos anos. E o cartão, breve, começaria assim: "Cara professora, devolvo-lhe o livro que tomei emprestado outro dia. Adorei a leitura. Pode emprestar-me outro?"

Bem, até que um final assim seria bastante justo. Mas, tenho de admitir, a decisão sobre tal desfecho terá de ficar para depois. Antes, ainda hoje mesmo, quero tomar essa beldade em meus braços e levá-la para cama. Deito-me por baixo e a coloco por cima. Antes de tudo, quero cheirá-la. Depois, com o desejo me consumindo, devo abri-la delicadamente, fazendo-a desabrochar novamente para mim. A cada instante, um prazer que não se explica será capaz de levar-me a um êxtase que durará noites seguidas. Só depois de possuí-la uma vez mais, ambos saciados em nossas secretas fantasias, é que tornarei a pensar no assunto da devolução. O que eu posso fazer? Nós, amantes incorrigíveis, somos egoístas. Quando nos afundamos em páginas assim, não pensamos em mais nada.

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