O peão – Texto de Leonardo Brasiliense

Eram o campo, as pastagens, lentamente era uma coxilha a um tanto de outra e no meio o que não era coxilha. Era tardinha. O sol, que não se mostrara o dia todo, se acabava. Garoava. Era frio, muito frio. A garoa, o céu fechado e a hora não permitiam que se enxergasse bem, mesmo assim o jovem peão seguia o rastro de sangue das ovelhas, apesar do que já se disse e do frio que lhe queimava os pés. O jovem peão era descalço e se chamava Ari, ou Arizinho, ou Arigó, conforme quem chamasse, cada um reservando-se o direito de fazê-lo tal ou qual. Ia sozinho, sem cachorro, porque cachorro que mata ovelha ensina os outros, e eles pegam o gosto, e se tem que sacrificá-los, o que é sempre uma dor. Prometia-se Ari que, chegando ao primeiro capão, enrolaria um cigarro para aquecer-se. Pensava em ter um poncho e botas. Pensava em ter meias, como seria bom e quente. Um poncho, botas, meias de lã, uma tarde de sol, e mais isto: chupar laranja depois do almoço. As meias de lã o fizeram lembrar as ovelhas mortas: se encontrasse uma, e se o bicho não fedesse muito, ia enfiar os pés por baixo dela, que a lã, mesmo molhada, é melhor que a garoa fria. Mas escurecia. Escurecia rapidamente, e os olhos, ainda que acostumados, quase só distinguiam a linha entre as coxilhas e o céu. Então rastro de sangue o peão não podia ver, e a lida, portanto, por ora estava acabada, adiada. Era voltar para casa. Mas escurecera e, sem lua e sem estrelas, a noite pesava densa, como as roupas do peão Ari, pois a garoa era fraca mas se acumulava e não secava. O jovem peão calculara mal o tempo da ida e da volta, entretanto, o momento era tardio às lamentações, restava prosseguir, passar a noite para vir o dia, e talvez o sol. E para dormir precisava estar protegido, precisava chegar ao capão. Ficou parado quieto para escutar um chiado de vento qualquer batendo nas árvores, de forma que soubesse a direção do mato. Ficou até sem respirar porque ouvia demais o seu próprio respirar. E nada. Chiava era a garoa no campo como se campo só houvesse, o que poderia ser verdade e má notícia. Ia seguir quando pensou ter ouvido algo diverso e estacou. Era um relincho longínquo e inconstante. Concentrou sua vigilância para o lado de que vinha o barulho, e não ouviu mais nada além do relincho, nem trote nem galope, quanto menos voz de gente. Alarmou sua presença, chamando por quem ouvisse. E como resposta, nada. Gritou mais forte, com a máxima força que podia. Nada. Resposta nenhuma, nem de gente, nem de cavalo, que o relincho parara. Gritou de novo, dessa vez ao redor todo; e por rodear-se, perdeu a orientação, porque era muito escuro e nada se via. Então não sabia pois para onde ia, não sabia de onde veio. Aguardou um tanto para guiar-se por um barulho qualquer, mas era o som da garoa no campo por todo lado e o som do seu respirar por dentro. Não tendo escolha, seguiu na sorte. E mal dera uns passos quando passou trotando e roçou-lhe o lombo de um cavalo no mesmo sentido em que ia, e ouviu o retinir de esporas. Quem vai lá, gritou. E somente o cavalo respondeu, relinchando. Quem vai lá, repetiu, e nem o cavalo mais respondeu, o trote ia longínquo e ininterrupto. Quem era não disse, refletiu, mas se vai para lá é porque vai a alguma estância, ou pelo menos a algum capão. Assim concluído, viu-se um sortudo, estava no rumo certo. Apressou-se. Andava rápido, mas sem correr, porque não enxergava, não sabia onde pisava, seguido desequilibrando-se pelos desníveis no chão, tropeçando num cupim aqui, numa carcaça mais adiante, sem parar, sempre rápido na direção dos relinchos, e segurando a vontade de correr. Pensava que, agora, se achasse uma ovelha morta, mesmo que não fedida, não aqueceria os pés, queria chegar logo à estância, ao capão, o que fosse que lhe esperasse à frente. Firmava os olhos para ver algo no meio da escuridão, e não via nada, mas a esperança de ver uma luz era grande e firmava os olhos de novo, e de novo não enxergava nada, e tinha que desistir por enquanto da esperança e concentrar-se na caminhada, porque, no seu raciocínio, se tropeçasse e caísse, perderia o rumo, o que seria imperdoável, já que os relinchos não ouvia mais.
Não lembrava o que lhe disseram o preto Joca, o Manoel ruivo e o Vilson, recomendações...
Era a noite anterior. Estava se ajeitando para dormir num pelego, na sala do rancho do Vilson... Vilson e a mulher, a Maricota, davam-lhe pouso desde que seu pai morrera, porque o patrão dispusera o rancho onde ele e o pai viviam ao peão que substituiu o velho. A mãe ele não conheceu, parece que fugiu com o amante, nem bem o menino se desmamara, o que não vem ao caso. Importa é que ele se arrumava no pelego, e o Manoel ruivo foi entrando no rancho sem bater na porta. Vilson e o preto Joca carpeteavam e se assustaram. O ruivo, sem boas noites, foi atropelando:
- O cão, o cachorro louco... ele veio aqui...
- Te acalma, vivente! - disse o Vilson. - Que história é essa?
- O cachorro...
Esbaforido, o homem mal conseguia falar:
- Lembram das ovelhas mortas perto da sanga, nas terras do dr. Felício?
- Marica, nos faz um mate - atalhou o dono da casa.
A Maricota apareceu na porta da cozinha, enxugando uma tampa de panela, com os olhos injetados no ruivo:
- Deixa o homem falar, pai.
Maricota ainda chamava o Vilson de pai, embora a filhinha eles já não tivessem há três anos.
E o ruivo pegou fôlego:
- Lembram? O patrão foi chamado lá, ele mais o doutorzinho Lucas, e acharam que um cachorro tinha matado os bichos, pelas mordidas.
Lucas era o filho do estancieiro, formado veterinário na capital, por isso o vizinho solicitou sua opinião. Eram quatro animais mortos, em quatro noites, com as gargantas dilaceradas e os olhos chupados, apenas isso.
O preto Joca se benzeu:
- Nem me fala... aquele negócio dos olhos não me deixa mais dormir direito.
E o menino Ari, sentado no pelego, quieto, escutava.
O Vilson quis amenizar:
- Vai assustar o guri, Joca! Se eles disseram que era um cachorro, era um cachorro, e eles é que entendem.
E se virando para a mulher:
- Maricota, nos arruma aquele mate, faz favor.
Aí, se quis amenizar, traiu-se, e o menino reparou, porque o Vilson só chamava a esposa pelo nome corretamente quando estava brabo, e só pedia favor a ela na mesma condição. E o Vilson, que era um santo, só ficava brabo quando estava nervoso.
Mas a Maricota não saiu da porta da cozinha, e não largou a tampa de panela, que já estava bem seca. Ao invés disso, perguntou ao ruivo:
- E agora, foi aqui, onde?
- Perto do banheiro.
Daí o preto, automático:
- Não pode, se ovelha não passa pr'aquelas bandas de noite...
- Justo! - confirmou o ruivo.
E o Vilson concluiu, desnecessário:
- Então foi arrastada.
A Maricota deixou cair a tampa da panela.
- Deus nos livre e guarde - continuou se benzendo o preto Joca.
- Não faz assim que tu impressiona o guri, Joca! - o Vilson gritou, batendo na mesa, o que mostrou o quanto impressionado estava ele mesmo, que nunca gritaria com uma visita em sua casa, e muito menos com o preto Joca, que era mais velho. E o Vilson sempre respeitou os mais velhos, fossem até pretos.
O Joca, ferido nas suas honras, levantou-se e foi saindo. O Vilson não se desculpou, porque lhe faltavam as palavras e também o traquejo. Apenas disse:
- Que é isso, Joca, que é isso!
Porém, não deu efeito.
Maricota, como fora de si, repetia, cheia de medo no olhar:
- É o bicho, é ele, eu sei, é o bicho... o bicho...
O Vilson foi abraçá-la. Já tinha visto a mulher desse jeito, quando perderam a menininha. Ela falou bobagens por dias. Ele quase a levou ao médico, na cidade, mas ela melhorou: depois da falação, foi um silêncio, que durou mais uns tempos, e só depois ela voltou ao normal, mais ou menos.
Manoel ruivo percebeu que devia ir embora, e foi.
O menino Arizinho se deitou no pelego e dormiu, mas mal, muito mal: sonhou com coisas ruins a noite inteira, e de manhã não lembrava com o quê, no entanto sabia que eram pesadelos. E deu graças a Deus por estar acordado.
Pois foi logo de manhã que chegou o doutorzinho Lucas com a incumbência. Os outros tinham marcação para fazer, e o menino Ari, que, afinal, já era praticamente um homem, podia dar cabo da fera.
- E não dá bola pro que diz essa gente velha, meu rapaz - terminou o filho do patrão, pegando-lhe pela nuca. - É só um cachorro que saiu das estribeiras... um cachorro louco... o mais é superstição dessa gente analfabeta.
Arizinho não compreendeu essa parte da gente analfabeta, mas gostou da espingarda que o doutor lhe confiara para a tarefa...
E agora estava ali, no meio do campo, andando na chuva, sem lembrar que o Joca, o Manoel e o Vilson, cada um falava ao mesmo tempo que os demais: um dizia como fazer se encontrasse o cachorro, outro dizia para cuidar a hora da volta, ainda de dia, outro que... era tudo junto e embolado, tantas recomendações, que ele não precisava ouvir, afinal, era um homem, e trabalharia com uma espingarda, feito homem...
Daí a coisa piorou: a chuva veio forte, tremenda, num instante, e gelada. Arizinho, de frio, pouco sentia os pés. Desesperou a correr, como desse modo os recuperasse. Mas qual, deu-se o previsível: tropeçou e caiu, de peito e cara no chão. Lanhou-se. Era o desespero. Chorava, no chão, de bruços, meia bochecha submersa no pasto alagado. E chorando ajoelhou-se, e se levantou. Agarrou a rezar para Nossa Senhora, e foi caminhando, sem saber para que direção. E a chuva, mais forte, relampejava, o que, ao invés de alumiar, confundia, fazia o peão tremer de susto e se piscar e só ver sombras quando abria os olhos. Mas ele seguia, chorando e rezando. Outro relâmpago, e quase tropeçou de novo. O rosto lavado de chuva, a alma salgada de lágrimas. Pensava se Nossa Senhora se preocuparia com um peão como ele, perdido no campo. Não: isso não podia pensar, porque diminuía a fé. É que a alma estava salgada demais, porque ele estava perdido demais, se não sabia para que lado andava, se ia aonde queria ou para o campo maior, vazio, deserto, não sabia. Tinha medo, e o medo e o sal não deixavam a alma pura, como tem que ser a de quem tem fé. Isso ele não pensava, contudo, sentia. E rezava o peão. E chovia a chuva. E relampejavam os clarões. E era o campo, uma coxilha após a outra, e entre elas o que não era coxilha. Não relinchara mais o cavalo, não retiniam esporas, nem Ari gritava por socorro. Ari apenas chorava, rezava e andava. Andava devagar porque ia cansando; rezava devagar porque ia cansando; chorava menos porque ia secando por dentro. E outro relâmpago ofuscou-lhe a visão e a reza, e logo um trovão fez tremerem o campo e as pernas do menino, que caiu, de novo.
E quem disse que Nossa Senhora se ocuparia de um menino peão, e perdido por culpa dele mesmo, de mau cálculo? Com a cara enterrada no pasto, isso ele não pensava, mas sentia. Sentia um vazio, uma dor escavada, desesperança. Ia morrer? Ficaria naquela água, e no frio, até se acabar? Que seria sua vida, uma perda de tempo, um desperdício? Tudo o que fizera, se morresse ali, deitado no campo, de frio, perdido, tudo era como nada, valia de quê? Isso tudo sentiu, o que foi ruim. Pior do que morrer de uma vez era sentir que tinha vivido pra nada, para se acabar numa noite de chuva, perdido no campo, atrás de um cachorro que matou uma meia dúzia de ovelhas, e que talvez nunca mais aparecesse para matar nenhuma, ou talvez voltasse, matasse mais uma meia dúzia e fosse abatido por um peão armado... Era isso o que valia, o Arigó, uma dúzia de ovelhas? Era muito, ou era pouco? Sentiu a pergunta, e também, com rancor, a resposta: era nada. Mas se virou de barriga pra cima: a chuva tão forte parecia que o pregava ao chão; abriu os braços, com as palmas das mãos pra cima: a chuva forte batia como o pregando a terra; e sentiu que esse nada que valia era tudo o que tinha, era a sua vida, e que a chuva, afinal, era só água, e a terra, só campo, e decidiu seguir. Fez o sinal da cruz, tomou fôlego, e seguiu andando e rezando, mesmo sem saber se alguém o ouvia, mas seguiu, porque esse saber importava menos do que seguir.
Então eram o campo, as pastagens, uma coxilha após a outra, tudo invisível no escuro, e um peão andando.

E-mail: lbrasiliense@uol.com.br

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