Minha prezada companheira

Sempre fui de pouca fala. Ela sabe disso. Depois da janta, aprecio sentar no pé da porta, fumar meu cigarro de palha, olhar a noite cair sem pressa, até o sono chegar. Minha vida é dura, como não? Desperto logo cedo, umas cinco, cinco e pouquinho. A primeira tarefa é ordenhar as vacas. Com jeito, amarro os pés, faço um afago no lombo macio, puxo o banquinho e me sento para o serviço.

Conheço gentes de maus humores, fazem uma certa judiação na lida com o gado, tratam as reses com violências, acham ser uma obrigação delas dar o leite. De minha parte, não aprovo esses procedimentos. Gosto do bom trato com esses animais. Antes da ordenha, converso com a vaca, dou uns tapas com carinho e às vezes até beijo ela. Depois, tiro o leite com delicadeza, apertando e puxando as tetas com cuidado. Faço assim desde o começo e não me arrependo. O leite rende desse jeito.

A Dália é minha testemunha. Aliás, já quase aprende isso tudo, faz gosto por me acompanhar e me ajudar na lida com o gado. Às vezes, faz até mais. Outro dia mesmo, não fosse ela, uma vaca brava me teria chifrado. A gente se abraçou muito depois disso. Eu pouco falo, é verdade, mas não nego carinhos. Ela gosta assim, sem dar sinal de reclamações.

Logo no começo, faz quatro anos, minha mãe veio de longe me visitar e, para dizer a verdade, não foi com a cara da Dália. Minha mãe é dessa gente antiga de muitas crendices. Nunca gostou de ninguém de cor preta. Tenho até vergonha de contar, mas se ela sai de casa e a primeira pessoa que vê é preta, dá meia-volta e começa tudo de novo. Diz que dá azar. Na minha infância, meu melhor amigo tinha o apelido de Neguito. Pois, a mãe fez, fez até acabar com nossa amizade. Nunca mais vi o Neguito, coitado.

Quando ela chegou aqui e olhou a Dália, bem preta, já torceu o nariz, eu logo percebi. - "Troca isso, meu filho." Na vez do Neguito, também foi o mesmo: "troca isso". Para ela, preto é coisa: "troca isso". Foi um Deus-me-acuda até explicar do meu contentamento pela Dália, e a Dália, muito educada, quieta, ouvindo o desaforo de cabeça baixa.

Na hora do almoço e da janta, a Dália precisava comer lá fora, veja se pode. Se fosse hoje em dia, eu não deixava mais acontecer. Com o tempo, a gente vai ganhando coragem para enfrentar os medos. Depois de ver que a Dália ia mesmo ficar, a mãe nunca mais voltou para uma visita, mas se voltasse, a história seria outra. Quero respeito, ora essa!

A Dália é um anjo. Às vezes, tenho pena dela. Foi o caso de um sábado à noite, na vila. Desde à tardezinha, eu tomava umas e outras no boteco da saída, e fui ficando por lá. Conversa vai, conversa vem com umazinha, acabei lá dentro. A moça era branca, branca, e as partes, tão vermelhas, de me fazer rir, não sei o porquê. Fomos com muitas brincadeiras, ela gemia com as cócegas e me mordia, depois parecia que chorava um pouco e assim enroscamos de verdade.

Quando levantei do colchão para me vestir, olhei a porta entreaberta e vi que a Dália estava ali. Fiquei bruto, com vontade de espancar ela, gritei com ela. Depois, viemos quietos para casa. E nisso tive pena dela. Descarreguei as compras e fomos jantar. Eu não quis abrir a boca para uma palavra, de mal comigo mesmo. Logo eu, que trato bem até as vacas, fui esbravejar com a minha Dália, e logo onde? Aquela noite, dormi com remorso.

Mas, nessas ocasiões, depressa raiava outro dia e, com ele, o batente. Ela me ajudava com as vacas, me acompanhava na entrega do leite, cercava os cavalos no piquete, ia para a roça comigo. Esquecia-se de entreveros e maledicências, era só a labuta se repetindo, e o gosto bom de se ter por perto o que se gosta.

Até hoje, eu e a Dália estamos juntos. Aos domingos, gozamos nosso recreio. Depois de terminados os afazeres, macarrão e sangue de boi no bucho, estico a rede debaixo da mangueira e é a hora de dormitar. Mais tarde, o sol baixo, eu e a Dália vamos para o meio da pastagem. Ela também tem seus gostos. Ela também merece a boa atenção. Com o canivete, marco um graveto qualquer e arremesso o mais longe que posso. E lá vai ela toda feliz, latindo e abanando o rabo, para trazer de volta o que eu joguei, para mostrar que conhece meu cheiro, minha essência.

Comments are closed.