Tony e Sting – Texto de Fernanda Villas Bôas

Deu na Folha de domingo: cidadãos supostamente endinheirados estão deixando seus cachorros de raça em clínicas veterinárias e pet shops de São Paulo. Os donos optam pelo abandono se o mascote adoece ou o orçamento doméstico aperta.

Aquele bicho com pedigree que foi comprado num impulso para atender a uma exigência do status recém-conquistado vira um transtorno quando a responsabilidade fala mais alto do que a diversão.

Enquanto ele é filhote e corre saudável pela casa, tudo bem. Ao crescer e perder pêlos ou ficar amuado num canto, já começa a ser arquitetada a passagem só de ida para a clínica mais próxima. E, assim, livra-se do animal como se ele fosse um guardanapo de papel usado.

Para não ser localizado, o proprietário chega a passar endereço falso para o veterinário. Conclusão: desaparece sem deixar vestígios. Nas clínicas, se os animais não são rapidamente adotados, o jeito é sacrificá-los. Que jeito besta de viver a vida.

Na minha adolescência, tive alguns gatos, mas nunca fui uma grande

freqüentadora de pet shops. Ok, naquela época, butiques e salões de beleza de bichos ainda não eram um filão lucrativo, mas, independentemente dessa circunstância do mercado, jamais tive interesse em exibir meus amigos como fifis ou lulus de madame. Eles eram gatos e sempre foram tratados como tal. Talvez, se isso recomeçasse a ser praticado, a ocorrência dos abandonos não fosse significativa a ponto de despertar a atenção da mídia.

Sabe por quê? Quando você trata um gato ou um cachorro como gato ou cachorro, é possível inclui-lo nas despesas mensais sem fraturar o saldo bancário. Ele precisa de vacina? Sim, precisa, mas não de xampu importado. Precisa de tosa? Também, mas roupinha de moletom é perfeitamente dispensável.

O problema é que muita gente encara o animal como um brinquedinho de luxo, uma aquisição compatível com o nível social a ser provado a qualquer custo. Esse raciocínio torpe autoriza que os gastos mensais ultrapassem a casa das centenas de reais – tudo para justificar o alto investimento e comprovar que a dinheirama existe para ser torrada, inclusive com os caprichos impostos pelo dono ao seu yorkshire de sangue puro.

Definitivamente, isso não é gostar de animal. Gostar de animal é respeitá-lo como tal, sem tentar “humanizá-lo”. Festa de aniversário foi feita para criança, não para bicho. Nossos camaradas de quatro patas detestam essa presepada e até se estressam com tanta algazarra promovida pelo dono – esse, sim, o verdadeiro capitão da festa.

Mas, por favor, me deixem falar sobre os meus gatos. Eles sempre foram, dignamente, gatos. Sting era um quase siamês que compartilhava uma caixa de papelão com um vira-lata preto e branco chamado Tony. Sarados e na flor da idade, os dois namoravam todas as gatas do bairro nos telhados, miavam loucamente na hora do almoço e do jantar, adoravam cafuné na orelha, caçavam ratos para torturar e coçavam pulgas: aquelas mártires que escapavam da água do tanque quando, finalmente, eu conseguia capturá-los para o banho.

Os dois iam ao veterinário se a situação agravava e, mesmo assim, só depois que seus próprios métodos terapêuticos falhavam (acho que comer folhas era um deles). Meus gatos partiram há anos, mas jamais roubei deles a condição de felinos. Um vizinho covarde envenenou o Sting; o Tony foi embora para morrer só. Gatos combinam com esse gesto de glamour: despedem-se da vida sozinhos para que nos lembremos deles em dias mais exuberantes.

Na minha memória, todos os dias foram exuberantes para esses formidáveis projetinhos de tigres, que me escolheram como dona muitos anos atrás. Ainda acho que vou revê-los no céu dos gatos sobre telhados de nuvens, namorando como nunca.

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