Kitty Balieiro: a repórter que saiu do velho oeste para desbravar o mundo esportivo

Houve um tempo no Oeste Paulista em que a simples menção ao nome Kitty Balieiro aguçava a curiosidade das pessoas. Era como um sinônimo de notícia. Eu me lembro desse começo de década, a de 1980. Nas cidades pequenas da ampla região coberta pela TV Bauru (Globo), o acontecimento ganhava contornos especiais se a repórter era Kitty Balieiro. Para o público dessas cidades, a Kitty, muitas vezes, era o que realmente importava. O fato, a notícia… ora, que isso se deixasse pra lá.

Ela começou na televisão em 1980, na então TV Bauru. Era recém-formada em Comunicação Social pela Fundação Educacional de Bauru (hoje Unesp). Ficou na região até o início de 1983, quando foi convidada a integrar a equipe de esportes da TV Globo de São Paulo. Como o curso da Fundação só formava bacharéis em comunicação, teve de voltar aos bancos escolares para terminar a faculdade de jornalismo e conseguir diploma e registro de jornalista. “Sorte que hoje em dia os cursos de jornalismo de Bauru são plenos”, diz Kitty.

Já como jornalista devidamente formada, atuou na TV Globo de São Paulo até 1988. De lá, saiu para trabalhar com um produtor internacional de esportes, com o qual cobriu os Jogos Olímpicos de Seul. Passou depois pelo SBT, onde coordenou em São Paulo a cobertura da Copa do Mundo de 1990, foi para a TV Cultura, para trabalhar no programa Vitrine, e também atuou com produtoras independentes e consultorias de comunicação.

Em 1992, para uma produtora internacional de esportes, cobriu a Olimpíada de Barcelona. Em seguida, viajou aos Estados Unidos, onde pretendia passar seis meses aprendendo inglês. Os seis meses, entretanto, se transformaram em dois anos e meio.

Voltou ao Brasil, no início de 1995, como assessora de imprensa do então secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Industrial, Emerson Kapaz, ao mesmo tempo em que fazia “frilas” como repórter para a ESPN Brasil, cursava pós-graduação em Comunicação Empresarial na ESPM, e montava sua própria empresa de consultoria de comunicação. Como não tinha horas disponíveis para tanta ambição - como ela própria define -, ficou apenas com a pós e com a empresa. Mas os “frilas” da ESPN Brasil passaram a ser cada vez mais constantes, até que no início de 1998, foi convidada para coordenar toda a redação em São Paulo durante a Copa do Mundo da França.

De lá para cá, assumiu cada vez mais responsabilidades na emissora. Em 1999, foi enviada como repórter e apresentadora a Winnipeg (Canadá), para a cobertura dos Jogos Pan-Americanos. Na volta, foi promovida a editora-chefe de dois novos programas: “A Caminho de Sydney 2000”, que iniciava a cobertura da ESPN Brasil para a olimpíada seguinte, e “Planeta Água”, que falava apenas sobre os esportes aquáticos olímpicos (natação, nado sincronizado, pólo aquático e saltos ornamentais). Ambos foram pioneiros na TV brasileira. Passou também a coordenar todo o planejamento da cobertura para os jogos de Sydney, inclusive publicando um Manual que serve de consulta para a equipe até hoje.

Em junho de 2000, três meses antes dos Jogos, o chefe de redação da ESPN Brasil, Yves Tavares, morreu repentinamente de um ataque no coração. Ele foi substituído pelo então editor executivo do canal, e Kitty assumiu a editora executiva. Na volta de Sydney, o novo chefe de redação foi demitido, e ela, promovida ao cargo, função que exerce até hoje.

Este ano, não viaja para Atenas para a cobertura dos Jogos Olímpicos. Fica na direção da emissora no Brasil, enquanto o diretor de jornalismo, José Trajano, embarca para a Grécia.

A cobertura dos jogos pela ESPN Brasil pretende, conforme explica Kitty, se diferenciar pelo jornalismo, uma vez que o sinal internacional das competições é o mesmo para todas as TVs. “Vamos falar de olimpíada 24 horas por dia, mostrar dezenas de jogos e competições, produzir jornais diários com entradas ao vivo de Atenas e realizar muitas entrevistas exclusivas”, adianta.

Quando não está trabalhando – o que é raro –, Kitty gosta de fazer artesanato, principalmente com materiais recicláveis. Entre os colegas de emissora, é conhecida como “a lixeira”, porque diz sair catando tudo que acha e que pode ser reaproveitado – caixas de fita, papel usado, embalagens de etiquetas, e por aí afora. “Penso em montar uma cooperativa algum dia, para contribuir com comunidades carentes que podem se beneficiar desta atividade”, diz ela. Faz também curso de francês, yoga e o que mais aparecer de interessante...

Com uma bagagem dessas nas costas é que Kitty concedeu, por e-mail, a entrevista a seguir.

O que a levou a trabalhar na área esportiva? Você planejou ou foi circunstancial?

Foi circunstancial. Quando trabalhava em Bauru, geralmente era uma das únicas que gostava de fazer as poucas matérias de esporte que apareciam na nossa pauta. Isso porque já gostava do ambiente e conhecia algumas pessoas, já que havia jogado basquete até a categoria juvenil no Sesi e BTC, com o Barbosa (Antonio Carlos, técnico da Seleção Brasileira de basquete feminino). Durante a cobertura da Globo das eleições municipais de 1982, vim trabalhar em São Paulo, para reforçar a equipe, e conheci o pessoal do departamento de esportes. Quando voltei para Bauru, recebi o convite para vir trabalhar com esportes. Fiquei surpreendida, mas achei que seria muito legal também, como realmente foi.

Até há pouco tempo, o jornalismo esportivo era um segmento quase exclusivo dos homens. As mulheres ainda enfrentam preconceitos na atuação profissional?

Acho que não. Quando comecei, era a única mulher no departamento de esportes da TV Globo. Em São Paulo, apenas a Regiane Ritter, que trabalhava na TV Gazeta, também cobria futebol. No Rio, a Isabela Scalabrini também fazia esporte, mas não cobria futebol. Um ano, mais ou menos, depois da minha chegada, todas as emissoras de São Paulo já possuíam mulheres cobrindo futebol. Hoje elas estão por toda a parte, e não apenas na reportagem. Na própria ESPN Brasil, a Soninha Francine é um dos grandes exemplos de que mulher pode jogar na grande área de igual para igual.

Em linhas gerais, como você analisa a qualidade do jornalismo esportivo brasileiro?

Acho que falta conhecimento, cultura esportiva. Na verdade, até mesmo no futebol, onde todo mundo sabe ou acredita que sabe tudo. É muito comum os repórteres esportivos se acomodarem naquela vidinha de redação-clube-redação, entrevistinhas, brigas, etc. É uma cobertura sem conteúdo, sem história, sem substância, calcada meramente no “aqui e agora”. Na minha opinião, não existe profissão melhor que a de comentarista de futebol. Hoje você diz que o time “x” é o favorito, e que deve golear. Amanhã, depois da goleada sofrida pelo time “x”, você diz que a derrota foi surpreendente, mas que o time “y” teve todos os méritos, se armou bem, etc, etc. Ninguém se “contradiz” , apenas “complementa opiniões”. Acho meio chato. Acho que falta mais conhecimento, falta exercitar a curiosidade e encarar os demais esportes como coisa também muito importante. Claro que existem exceções, com gente muito boa por aí, como Juca Kfouri, Armando Nogueira e o próprio José Trajano. Por outro lado, vejo com pesar aumentar o número de profissionais mais interessados em faturar que em informar.

Você trabalhou um bom tempo diante das câmeras. Não sente falta do vídeo?

Sinto e, de vez em quando, eu mesma me escalo para fazer algumas coberturas. Recentemente, estive em Curitiba e no Rio de Janeiro, cobrindo competições seletivas para a olimpíada de Atenas. Antes, estive aí mesmo em Bauru, fazendo uma matéria para o Social Clube. E assim vai. Sempre que posso, volto para a rua.

Aliás, quando se fala em trabalhar em TV, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas, mesmo jornalistas e estudantes, é o vídeo. Mas atrás das câmeras há também um vasto território a ser explorado, você não acha?

Vastíssimo e, muitas vezes, muito mais importante. Editores de texto, chefes de reportagem, produtores de pauta, editores-chefes, são apenas algumas das funções exercidas por aqueles formados em jornalismo. Os que têm registro de radialista também exercem funções muito importantes numa TV, desde produtores internos ou externos, até editores de imagem, operadores técnicos, etc. O que muita gente não sabe é que, muitas vezes, são estes profissionais que “salvam” o material que o repórter traz da rua. Num nível hierárquico um pouco mais elevado, são os chefes de redação e os diretores de jornalismo que pensam, direcionam e criam as novas atrações de um canal. E é função destes profissionais também, que geralmente têm uma ampla experiência anterior, enxergar a emissora no mercado e entender a concorrência, entre outras funções administrativas.

Para os estudantes que pensam em trabalhar em TV, quais as dicas que você pode passar?

Ler. Sem preguiça, sem temas específicos e sem preconceitos. Ler, conhecer, aumentar o conhecimento geral. É impressionante o número de recém-formados que me procuram ou enviam currículos onde abundam erros gramaticais, de concordância, etc. Durante entrevistas, é comum os candidatos não saberem conduzir uma conversa por mais de cinco minutos. É triste, mas é a realidade.

O time da ESPN Brasil, do qual você faz parte, é realmente um timaço. Como é conviver com tantos profissionais que na maioria das vezes têm opiniões fortes e polêmicas? Há algum acontecimento curioso através do qual você possa retratar esse cotidiano?

A convivência é tranqüila, com as explosões esperadas num ambiente como esse. Mas é um ambiente altamente criativo, sempre de muita conversa, discussão, invenção de novos programas, novos formatos, etc. É um ambiente democrático, ético, generoso e solidário no geral. Na exceção, às vezes acontecem alguns confrontos, como é de se esperar que aconteça em qualquer lugar onde convivam mais que um ser humano.

Sua vida é muito corrida? Como você lida com as pressões do dia-a-dia jornalístico numa cidade que também é naturalmente nervosa?

Minha vida é corrida, mas hoje tenho sorte de poder fugir pelo menos do maior causador de estress aqui em São Paulo, que é o trânsito. Hoje posso trabalhar em horários onde não pego aqueles intermináveis congestionamentos, e só isso já é um grande alívio. Mas o nervosismo, a inquietação, a ansiedade da metrópole, são altamente contagiosos. A saída é buscar opções mais relaxantes. Faço meditação e yoga, trabalho com as mãos, com meu artesanatinho, escrevo umas bobagens, e sempre tomo uns chopinhos, porque, afinal, é muito importante manter a hidratação corporal...

Você tem saudades de sua época de televisão do interior, quando seu nome era sinônimo de notícia no oeste paulista? Há algum fato marcante daquela época?

Eu estou naquela fase da vida em que sempre penso: se eu soubesse o que sei hoje naquele tempo... Mas é uma contradição, é claro, porque a vida é assim mesmo, um aprendizado contínuo. A cada experiência, a gente aprende novas lições. Acho que tenho sorte, porque todas as lições que aprendi foram de forma fácil, sem sofrimento maior que o necessário na oportunidade. Eu não sinto saudades do meu tempo na TV do interior, mas me lembro muito como eram aqueles tempos, de constante descoberta. Hoje, com tanto tempo de estrada, os problemas ou as soluções são quase sempre previsíveis. E se imprevistos acontecem, eles já não provocam tanta arritmia como antigamente, porque eu sei que, de uma forma ou de outra, a solução será encontrada. Dos meus tempos em Bauru, me lembro muito bem, primeiro, do meu espanto ao me ver reconhecida em todos os lugares que ia. Me lembro também de ter feito algumas matérias bem interessantes, como uma entrevista com o então presidente Figueiredo, quando furei a segurança e botei o microfone na frente do cara, e de uma outra entrevista muito legal com uma mulher de Botucatu. Era o Ano Internacional da Pessoa Deficiente, e esta mulher não tinha nem os braços nem as pernas. Ainda assim era professora, tinha muitos amigos, um incrível apoio da família e uma enorme alegria de viver. A matéria entrou no Jornal Nacional, e foi certamente uma das mais marcantes da minha carreira aí no interior.

Ainda falando em fatos marcantes, nesses anos todos de profissão quais foram os grandes momentos de sua vida profissional? Quer citar também um decepcionante?

Os momentos mais marcantes foram certamente a coberturas das quatro olimpíadas: 1984, em Los Angeles, 1988, em Seul, 1992, em Barcelona, e 2000, em Sydney. Os Jogos Olímpicos são, para mim, a maior e melhor competição do mundo. Em Los Angeles, aconteceu um fato inesquecível. Era minha primeira olimpíada, mas eu vinha acompanhando os atletas brasileiros há algum tempo. Lá foi a primeira vez que se usou algo parecido com e-mail coletivo. A IBM havia implantado um sistema onde era possível todas as pessoas credenciadas mandarem mensagens umas para as outras. Joaquim Cruz havia ganho a medalha de ouro nos 800 metros, e havia passado sem problemas pelas eliminatórias dos 1500m. A final dos 1.500 estava marcada para aquela tarde. A TV Globo iria transmitir ao vivo, com Osmar (Santos, locutor esportivo) .... Eu já estava indo para o hotel, depois de ter trabalhado de manhã, quando resolvi checar minhas mensagens. E qual não foi minha surpresa quando encontrei uma mensagem do próprio Joaquim Cruz, me avisando e pedindo para avisar aos outros que ele não disputaria a final porque estava com uma forte gripe. Foi incrível, porque ninguém sabia até então. E outro momento muito legal foi a medalha de ouro do vôlei masculino em Barcelona. E mais um monte... tantos que eu gastaria páginas e páginas para contar.

Quais as principais diferenças entre o dia-a-dia do trabalho na TV aberta e na TV paga?

Na TV aberta, o esporte é um departamento, uma editoria do jornalismo. Na TV paga, o esporte é a alma do canal. Nosso relacionamento interno também é mais light, porque as pressões com ibope, audiência, são muito menores. Nossa concorrência é menor, mas ainda assim existe. A gente sempre fala aqui também que às vezes parece que vivemos num outro mundo, mais bacana, porque nunca temos de mostrar reportagens sobre tiroteios, balas perdidas, seqüestros, guerras, etc. Nossa TV é de esportes, e ponto. Só que isso não nos tira a perspectiva de mundo, e colocamos o esporte num contexto bem maior que o das quatro linhas. Já fizemos documentários sobre Futebol & Música, Futebol & Literatura, Especiais com Chico Buarque, etc, além do próprio programa Social Clube, que mostra iniciativas que melhoram a vida das pessoas através de projetos esportivos.

E o Bar Imprensa, em Bauru, qual é a sua participação. Há novos planos para ele?

Sou sócia do bar, junto com minha irmã Ana e meu cunhado Paulo. Mas eles é que tocam de verdade, trabalham o dia-a-dia e decidem o que deve ser feito. Eu ajudo sempre que posso. E estamos sempre pensando em novas atrações para o pessoal que vai lá. Mês que vem, junho, será todo dedicado a Chico Buarque, que vai completar 60 anos no dia 19. Vai ter música todas as semanas, sorteios de DVDs, livros, etc. Gostei muito da idéia da biblioteca. Tem um armário lá cheio de livros, que o pessoal pode levar emprestado e depois devolver. Vamos também inaugurar uma pequena seção de presentes. Vem novidade por aí...

2 Responses to “Kitty Balieiro: a repórter que saiu do velho oeste para desbravar o mundo esportivo”

  1. Só queria deixar registrado : A satisfação em saber que aquela mocinha bonitinha que entrevistou meu filho mais velho após competir em uma prova de Hipismo Rural realizada em SP, para o GE da época, é hoje ” fera ” da ESPN. Foi em 1985 , acho eu. Como os recursos televisivos eram parcos, tentei de todos os modos a gravação, inclusive falando com com você por tel, mas não consegui !! Mas valeu assim mesmo. Com meu filho hoje homem feito com duas lindas filhas, ainda recordamos essa passagem !! Felicidades e parabéns.!!! Luiz Carlos
    JACAREÍ.SP.-

  2. bolivar bauru disse:

    sei de tudo que comentado acima , pois conheço bem kit, so queria ver algumas fotos déla.