Primeiros socorros

No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Bandaid no calcanhar...

(Trecho da música “Dois pra lá, dois pra cá”, de João Bosco e Aldir Blanc)

- Bom, você pode não acreditar, filho... Aliás, às vezes nem eu mesmo acredito...

Dizendo isso, o velho farmacêutico debruçou-se sobre a escrivaninha onde decifrava, com seus grossos óculos, uma terrível receita médica. Mas o neto, um poeta adolescente cujas energias ameaçavam explodir-lhe as têmporas diante de uma história romântica, não lhe dava sossego. Na verdade, não o desacreditava. Queria, isto sim, animá-lo a contar-lhe aquele episódio que até hoje é lembrado pelos mais antigos daquela rua de comércio movimentado, muito tranquila num passado ainda perto.

- Você não se lembra mais, pobre velhinho?

O jovem de traços acentuados como são os traços dos poetas desenhava no canto da boca um meio sorriso irônico, bem enfiado para o lado do avô. Este, desistindo dos garranchos do papel timbrado de um desses doutores que não sabem nada de nada, fez o olhar dobrar a esquina dos aros pretos. Balançou a cabeça.

- Vai anotar?

- Não, vovô. Guardo tudo aqui. Tenho cabeça boa... ainda.

- O que você quer saber mais do que já se sabe?

- Nunca ouvi de você, a testemunha principal.

- Ah, sim... Meu querido, não confie nas testemunhas...

Riu. Tossiu um pouco.

- Está quase na hora de irmos. Sirva-me de meu conhaque e eu contarei o que você quiser.

O poeta também sorriu.

- Você sabe que não pode.

- A um interessado, uma testemunha tudo pode.

Riu. Um pouco menos agora, mas riu. Tossiu. Um pouco mais. Atrás das lentes, seus olhos brilhavam ao observar a bebida escorrendo, dourada, para a boca da pequena taça.

- Isso, isso, está ótimo.

Sorveu um curto gole. O neto também servia-se. O velho não o censurou.

- Um brinde, meu querido, um brinde a alguém que ainda se interessa por uma história tão bonita.

O poeta não soube. Talvez o semblante de felicidade exposto pelo avô, por ele estimado. Quem sabe a ânsia de ouvir o caso. O poeta não soube, mas ao ouvir o velho seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Vamos, diga-me.

Disfarçou um arroubo. Virou-se para depor a tacinha sobre a mesa e aproveitou para limpar os olhos.

- Estou pronto. Sou todo ouvidos.

- Ele era um sujeito diferente, sabe?

- Como assim, diferente?

- É difícil explicar. Só mesmo quem o conheceu pode entender. Não era como nós. Sim, sim, éramos mais jovens que ele, é verdade, mas mesmo assim havia algo em sua personalidade que não podíamos explicar.

- Como vocês o conheceram?

- Aqui. Ele simplesmente apareceu. Pediu emprego. Teve sorte.

- Mas vocês não sabiam quem ele era, de onde veio?

- Sabíamos apenas que morava numa pensão e que a mãe morrera pouco antes que ele se mudasse para cá. Era uma pessoa reservada. Não era fácil que alguém pudesse imiscuir-se em sua vida.

- Mas não tinha ninguém por aqui?

- Não. Apenas nós. Amigos um pouco mais novos que ele. Talvez mais colegas do que amigos. Às vezes, saíamos para alguma festa, algum bar, mas isso não acontecia com frequência. Nossas relações eram muito mais profissionais, você compreende?

- Sim, continue, vovô.

- Aconteceu que, não se sabe exatamente quando, ela começou a vir. Um dia, buscava algodão. No outro, algum xarope. Ou um remédio qualquer. Álcool, essas coisas.

- Era uma cliente conhecida?

- Não, não. Até o desfecho, nunca nos interessamos. E quando nos interessamos, ela evaporou. Simplesmente sumiu. Não soubemos mais dela. Naqueles dias que antecederam o incidente, apenas conversávamos sobre seus atributos. Era uma moça de beleza formidável. Ele apaixonou-se completamente.

Fez um sinal para o jovem poeta, que imediatamente, sem questioná-lo, debruçou a garrafa sobre uma taça e depois sobre a outra.

- Ele falava dela para vocês?

- De modo algum!

O velho sentiu a bebida lamber-lhe a garganta, fechou os olhos e balançou a cabeça.

- Ele falava muito pouco. Eu disse a você: era diferente. Era recatado. Parecia guardar todas as suas opiniões, tudo o que sentia. Mas nós víamos a reação dele quando ela entrava. No começo, zombamos, é verdade. Mas as coisas foram se tornando mais sérias. Da parte dele, é claro.

Raspou a garganta. Tombou mais um pouco da taça.

- Mas ela não correspondia em nada?

- Ora, e corresponder a quê? Ele mal a encarava. Estou dizendo: era um sujeito esquisito. A verdade é essa.

- Bem, bem, e como as coisas se deram?

- Havia algum tempo que ela vinha à farmácia. Como eu disse, no início, zombávamos dele. Falávamos coisas engraçadas para que ele reagisse. Que ele era mais velho que ela. Que ela era ainda um bebê perto dele. Fazíamos essas gozações que tempo nenhum é capaz de mudar. Quando vemos um amigo nesse estado, você deve saber... Algo se diz a ele.

- E ele nada?

- Nenhum pio.

O poetinha virou a taça. E agora, sem que o avô fizesse qualquer menção, ele mesmo repôs o conhaque. Vieram perguntar se deveriam chamar o táxi. O velho fez um sinal com a mão. O neto fechou a porta do escritório. Sentou-se diante do avô.

- Está bem, agora vamos em frente. Conte-me o desfecho.

- Bem, um certo dia, sem que esperássemos, ele nos chamou para sair. Imagine você nossa surpresa. Trabalhávamos juntos havia pelo menos um ano. E nunca, nunca mesmo, ele nos convidou a coisa alguma. Sempre eram os outros que o chamavam para isso e aquilo.

- E vocês?

- Bem, mesmo que tivéssemos o mais importante dos compromissos, tínhamos de dar um jeito. Você sabe: curiosidade mata.

Riu aquele riso enferrujado, seguido de uma breve tosse. Agora, apenas olhou para a taça que acarinhava entre os dedos.

- Nós fomos a um bar aqui perto. Estávamos em quatro. Os três moços que trabalhavam aqui e ele. Pedimos nossas cervejas, começamos a comer alguns petiscos, tudo com a maior naturalidade. Não queríamos dar a entender que estávamos ansiosos.

- Mas estavam.

- Sim, claro, não víamos a hora de ouvirmos o que ele tinha a nos dizer.

- E o que foi que ele disse, vovô?

- Ele não nos disse grande coisa, essa é a verdade. Ficamos de certo modo decepcionados.

- Como assim?

- Fomos para o bar esperando uma grande revelação daquele sujeito tímido, introspectivo, do qual gostávamos porque tinha um carisma, algo difícil de explicar, como eu disse a você, algo que nos fazia estimá-lo.

O velho parou por um instante com o movimento da taça. Fitou a parede, mas o neto soube que ele olhava através dela, talvez para um passado já inacessível como são todos os passados.

- Vovô?

- Sim, sim...

O velho balançou afirmativamente a cabeça. Tomou outro gole.

- Ele nos disse isto: “Tenho uma estranha sensação”.

O jovem poeta remexeu-se na cadeira. Lançou mão de um último gole e voltou a encher a taça.

- Uma estranha sensação??? Só isso?

O avô riu.

- Desde quando você toma conhaque?

- Desde hoje. Vamos lá, vovô, vamos lá...

- Bem, ele explicou vagamente a sensação. Sabíamos que ele estava apaixonado. E ele sabia que nós sabíamos disso. Para suas possibilidades, até que ele falou bastante naquela noite. O diabo é que ele mesmo não entendia o que o atraía tanto na garota, entende?

- Se eu entendo? Ora essa, alguém que se apaixona nunca sabe direito o motivo dessa atração!

- Sim, mas ele achava que havia algo mais, algo que ele precisava descobrir. Algum aspecto da moça! Um detalhe no rosto, o jeito de andar, os olhos, o cabelo, a voz? Não, meu querido, ele não sabia!

- E vocês o ajudaram?

- Bem, nós evitamos qualquer zombaria a partir daquele momento. No fundo, queríamos que ele tomasse coragem e dissesse a ela o que sentia.

- E ele fez isso?

- Não, absolutamente. Nunca...

- Entendo, então vamos ao que interessa?

- Acho que alguém aqui me pediu para contar uma história!

O velho meteu-se um ar zombeteiro, irônico. Depois, gargalhou. E tossiu.

- Está certo, está certo... Conte-a, vamos lá.

- O que mais haveria para contar, senão o que vimos naquela tardezinha? Ele a esperou o dia todo. Seus olhos não podiam disfarçar. Quando ela chegou, ele foi atendê-la. Nós continuamos com nossas tarefas, como não poderia deixar de ser. Até que ouvimos um movimento brusco atrás de uma das prateleiras. Eu fiz sinal para os outros que continuassem a agir naturalmente, enquanto ouvíamos aqueles suspiros, como se houvesse um pranto que não pudesse ser libertado.

- Mas você foi até eles?

- Sim, fui. Pé ante pé, cuidadosamente. Eu imaginava que, finalmente, ele quisera interromper seu sofrimento. Pensei que ele tivesse resolvido dizer tudo a ela. Ele havia se abaixado. Por cima da prateleira, num dos corredores, eu só podia ver os cabelos dela.

- Mas ela fazia algo? Falava algo?

- Ela apenas olhava para ele, atrás de si. Ele estava segurando uma das pernas da menina. Ela dobrava uma perna para que ele pudesse segurá-la e equilibrava-se na outra, apoiando-se na prateleira. Ao avistá-lo, vi que ele sondava cuidadosamente a batata da perna direita da mocinha. E bem baixinho ele dizia: é isso, é isso. Beijava-a na batata da perna. E beijava com tanto ardor que o bandaid que ali estava – o bandaid que todos os dias ali estava e que finalmente fora descoberto por ele como o objeto de sua atração – ele o beijava com tanto ardor que o bandaid descolou-se da perna. Foi quando vimos. Sim, nós vimos, eu e ele...

- Viram o quê, vovô? Por favor, diga...

- Vimos que ali, na batata da perna da garota, a partir da marca branca deixada na pele pelo frequente uso do bandaid, exatamente dali, expandia-se um tipo de chaga, uma ferida vermelha, latejante, assustadora.

- Só vocês estavam ali?

- Sim, apenas a garota, ele e eu. Agora havia um silêncio ensurdecedor pairando sobre a atmosfera da farmácia. Parecia que estávamos fora da realidade, não sei se posso explicar aqueles momentos. Eu pude vê-la com um leve sorriso nos lábios, enquanto olhava para ele, para sua expressão enlouquecida.

- Mas ela ria de quê? Do que ela ria, afinal?

O velho virou a taça sem saber se havia ainda alguma gota. Suspirou.

- Quem pode saber? Seria do que nós só saberíamos depois, seria de alguma sensação de infinita glória ao saber antes do que nós só saberíamos depois? Do que papai conseguiu encobrir na Santa Casa para evitar maiores polêmicas? Do que alguns meses depois enlouqueceria o médico responsável pelo caso? E quem sabe até mesmo papai, que também se foi tão cedo?

- Então é verdade? O que dizem é mesmo real?

O velho fitou novamente um ponto qualquer na parede do escritório. Mas, claro, não era para lá que olhava.

- O que é a verdade, meu querido? É o que nos contam seriamente? É o que nos confessam? É somente o que vemos? Não sei o que é verdade ou o que é real. Sei apenas o que vi.

- Sim, sim, e o que o senhor viu exatamente?

- Quando fizeram a autópsia, só papai e eu estávamos aguardando. O médico chamou apenas papai, mas eu espreitei pela pequena fresta da porta que um descuido deles permitiu. A única coisa que ouvi perfeitamente da parte do médico foi: “Não havia, o senhor compreende? Não havia! Como pode ser?”. E da boca de papai: “Como é possível um coração desaparecer numa sala de autópsia, meu caro?”.

- Mas... E o que o médico explicou?

- Quando ouvi aquilo, eu os deixei e saí de lá. Eu precisava tomar ar. Estava sufocando. Parecia que eu não respirava desde que tudo tinha acontecido, horas antes, na farmácia; desde o momento em que eu vi aquela batata da perna da garota: uma chaga abrindo-se, alargando-se em torno da área marcada pelo bandaid. Uma chaga revelando um pequeno coração, que parecia crescer a cada segundo, pulsando, pulsando. E no ar a voz entrecortada do nosso amigo ressoando como se deixasse a garganta espremendo-se entre paredes estreitas: “Eu dei a você, dei a você meu coração”.

A boca do jovem poeta estava entreaberta. O velho fitava o nada. Um instante depois, como se tivessem sincronizado seus movimentos, ambos voltaram-se para a garrafa de conhaque sobre a escrivaninha. Mas ela já estava vazia.

(Fim)

Veja abaixo Elis Regina cantando "Dois pra lá, dois pra cá"

http://www.youtube.com/watch?v=-JV1u0txHz0&feature=player_embedded

Veja abaixo a letra de "Dois pra lá, dois pra cá"

Sentindo o frio
Em minha alma
Te convidei prá dançar
A tua voz me acalmava
São dois prá lá
Dois prá cá...

Meu coração traiçoeiro
Batia mais que o bongô
Tremia mais que as maracas
Descompassado de amor...

Minha cabeça rodando
Rodava mais que os casais
O teu perfume gardênia
E não me perguntes mais...

A tua mão no pescoço
As tuas costas macias
Por quanto tempo rondaram
As minhas noites vazias...

No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Band-aid no calcanhar...

Eu hoje, me embriagando
De wisky com guaraná
Ouvi tua voz murmurando
São dois prá lá
Dois prá cá...

No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Band-aid no calcanhar...

Eu hoje, me embriagando
De wisky com guaraná
Ouvi tua voz murmurando
São dois prá lá
Dois prá cá...

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