Arquiteto da loucura

Por aí, em meio ao desatino dessas ruas caóticas, chamam-me louco. Às vezes, sentado na sarjeta ou deitado em becos, entre latas de lixo que me abrigam do frio, pego-me a pensar: será que sou mesmo louco? Seria possível à mente humana engendrar uma farsa tão perfeita? Pode haver uma circunstância mais terrível que esta e ainda assim firmar-se como inverdade? Riem-se de minha angústia os poucos dispostos a ouvir-me. Pedem-me para contar-lhes de novo minha história, depois abandonam-me sozinho à mercê do desespero sempre pronto a exigir-me refém de seu cárcere. Em meu caminho, não se podem mais contar as ocasiões em que estive perto de pôr um fim a isso tudo. Entretanto, não tive coragem no começo, e agora já acostumei-me ao confronto. Aprendi a esperar que a turbulência violenta de meus nervos se vá e deixe-me uma vez mais com o fiapo de esperança ao qual me apego para sustentar-me à vida. Sou um desgraçado, fie-se nisto quem vier a ler-me um dia. Ser humano algum deveria merecer destino semelhante, mas aqui estou, certo de minha sina e ao mesmo tempo aterrorizado diante dela. Peço-lhe: leia-me e diga-me se estou louco.

O arquiteto Rodolfo Bahnhof, cuja ascendência europeia permite-lhe um brilhante início de carreira, especialmente a partir de contatos com importantes multinacionais instaladas no país, leva também uma invejável vida pessoal. É casado com Isadora Gutierrez Bahnhof, artista plástica de renome nacional. Após cinco anos de vida conjugal, Rodolfo e Isadora já contam dois filhos, Emanuel e Lydia, mas devem parar por aí: como um mal que se espalha nos tempos modernos, as atividades de ambos não lhes permitem dedicar-se como sempre necessitam os filhos.

Os quatro moram num sobrado de porte médio, comprado pouco antes do casamento e localizado num bom bairro residencial. Na parte de cima da residência, ficam os quartos com banheiros e uma sala onde a família reúne-se à noite para ver televisão, ouvir música, ler ou simplesmente divertir-se com as peripécias das crianças, o menino com quatro e a menina com três anos. No térreo, há um amplo living, a cozinha, a sala de almoço, mais banheiros, um cômodo destinado para a despensa, o escritório onde Rodolfo trabalha quando está em casa e o ateliê de Isadora. Além disso, seguem-se uma área de serviço, churrasqueira, piscina e um jardim. Trabalham na casa uma governanta, uma babá e um aposentado que cuida do jardim e também é uma espécie de faz-tudo.

O cotidiano de Rodolfo é frequentemente atribulado, com visitas a terrenos onde serão erguidos prédios, acompanhamento de medições, discussões sobre os projetos que ele posteriormente leva ao papel e muitas conversas telefônicas. Às vezes, sai logo cedo, após o café da manhã, e só volta à noite, quando Isadora e as crianças já terminaram o jantar. Em outras ocasiões, passa o dia trancado em sua saleta, concentrado nos vários projetos simultâneos que leva adiante. Invariavelmente, debruça-se sobre o trabalho até mesmo nos fins de semana. Já Isadora mantém uma rotina mais organizada. Quase nunca sai durante o dia, a não ser para resolver assuntos pessoais ou de Rodolfo e das crianças. Passa as manhãs no ateliê, almoça por volta das duas, e aproveita a tarde para fazer contato com agentes que comercializam seus quadros e programam suas exposições. Quando estas acontecem, Isadora altera completamente seu dia a dia para estar sempre presente. As crianças frequentam a escolinha na parte da manhã e depois têm a companhia da babá. Pouco trabalho dão aos pais. Aos sábados, geralmente a família faz um passeio que contemple os anseios de diversão dos pequenos.

Rodolfo, embora constantemente metido com seus projetos, não consegue esconder o ciúme que sente por Isadora. Não chega a ser algo doentio, mas em certas ocasiões gera um grande rebuliço em sua concentração profissional, mesmo a ponto de fazê-lo interromper seu trabalho. Isso ocorre com frequência em épocas de exposições. Isadora, com seus olhos verdes, pele levemente morena, corpo esguio e uma expressão de simpatia, dificilmente deixa de encantar aqueles que convivem com ela, seja em seu cotidiano, seja por alguns instantes nessas conversas durante um evento artístico. Houve um período, logo no começo do casamento, em que Rodolfo reunia absoluta certeza de que Isadora o traía com um de seus agentes. Certa noite, disposto a cometer um desatino, ele seguiu-a a uma reunião, segundo ela, de trabalho. No restaurante, o marido ciumento pôde observá-la conversando alegremente com o tal agente, este acompanhado de seu namorado. A partir daí, Rodolfo tentou ser mais comedido, mas nem sempre conseguia. Em outra oportunidade, por pouco não espancou um rapaz no meio de uma das exposições da mulher. O sujeito realmente foi inoportuno, segurando a mão de Isadora por um longo período, num dos cantos do salão. Extremamente educada, ela não conseguia desvencilhar-se do admirador. Foi quando o marido aproximou-se e, bruscamente, acabou com a inconveniência.

Isadora, ao contrário, não demonstra qualquer contrariedade com o assédio que vez ou outra o marido sofre por causa de seu porte atlético. Rodolfo, na época de estudante, fazia parte da equipe de pólo aquático da universidade, e até hoje pratica o esporte regularmente com ex-colegas de escola que mantêm um time apenas para jogos amistosos. Talvez por sentir-se absolutamente segura ou por prender-se a uma postura não muito comum entre os que são apaixonados, Isadora jamais permitiu-se à mais discreta cena de ciúme. Isso, contudo, não significa que ela trate Rodolfo friamente ou que não o deseje. Entre quatro paredes, longe dos olhares inquisidores dos empregados ou da presença inocente das crianças, seu fogo arde. Seus seios grandes são capazes de arrebatar o marido num só instante. Ela sabe que esse é o ponto fraco de Rodolfo. Ele literalmente enlouquece. E ela aproveita-o em todo o seu vigor físico. Numa de suas últimas exposições, quando todos já tinham saído, ela puxou-o para um canto e ali mesmo, em meio às taças e garrafas vazias, atiçou-lhe até que os dois encheram-se de prazer. Assim é Isadora, aparentemente calculista, mas um redemoinho sem rumo quando se entrega à paixão.

Há, entretanto, algo que Isadora não imagina. Rodolfo deixou-se levar por uma relação extraconjugal. Tudo entre ele e a amante ocorre de maneira extremamente discreta. Ela vive um casamento infeliz e encontrou nele o que sempre buscou sem sucesso no marido: carinho e atenção. Nem sempre Rodolfo consegue dispensá-los a Gabi, mas, sempre que pode, o faz. Gabi, apesar de muito nova ainda, também tem um filho pequeno. Mora distante do bairro de Rodolfo e sabe das limitações e dos riscos de sua relação. Conheceram-se, por ironia, numa exposição de Isadora. Gabi concluía o curso de jornalismo e produzia uma reportagem para um jornal laboratório da faculdade. Muito assediada naquela noite, Isadora não pôde atendê-la, o que provocou o encontro com Rodolfo. Este, para ser gentil com a estudante, fez-lhe companhia, falou sobre Isadora e tudo mais, embora no fim do encontro restasse da parte da moça apenas o interesse por ele. Depois, tudo correu como sempre: falaram-se por telefone, marcaram um encontro etc e tal. Na verdade, Rodolfo tenta desde o início dissuadir-se da ideia de conduzir a relação, mas até hoje não venceu o desejo de lidar também com uma mulher que não seja a sua, e isso, acredite ou não, o faz sofrer. Às vezes, no meio da noite, entre pesadelos, ele acorda com terríveis dores de cabeça. E, para seu bem, Isadora está ali, ao seu lado, para consolá-lo.

Relatados esses pormenores, que, não duvide, serão decisivos ao fim desta história, passemos ao desenrolar do fato principal. Desde que foram morar no sobrado, logo que se casaram, Rodolfo e Isadora deparam-se quase diariamente com um rapaz de nome Venâncio. Com o perdão da expressão, trata-se o tal de um corpo estranho para um bairro que, se não é luxuoso, reúne moradores com dinheiro suficiente para viver bem. Venâncio vive maltrapilho, aparenta ter mais de quarenta anos quando na verdade ainda não conta trinta, é um pobre diabo perambulando pelas ruas bem-cuidadas do bairro. Nos primeiros dias, assustaram-se com a presença constrangedora, mas logo perceberam que todos dali o conheciam, forneciam-lhe comida, cigarros, dinheiro, enfim, garantiam-lhe uma quase-vida, uma sobrevida. Bem, Rodolfo, desde a universidade, interessou-se em apoiar projetos sociais, e por isso não foram poucas as ocasiões em que conversou com moradores de rua. Depois da conclusão dos estudos, do casamento, do ingresso na profissão e mais adiante, do compromisso gerado pelos filhos, Rodolfo afastou-se desses caprichos, ou seriam responsabilidades sociais? O fato é que o tal Venâncio, de alguma forma, despertou nele esse lado condescendente com os ditos menos abastados. Enfim, procurou ajudá-lo.

Com o passar do tempo, porém, Rodolfo percebeu que o comportamento de Venâncio e talvez seu estado mental não o colocavam entre as pessoas miseráveis que querem ser ajudadas. Venâncio era arredio a qualquer tipo de auxílio que não fosse para sua sobrevivência. Até mesmo roupas menos surradas era difícil fazê-lo aceitar. Por vezes, Rodolfo pensou em chamar profissionais do serviço social para tentar tirá-lo da rua e dar-lhe um norte, mas foi dissuadido pelos próprios vizinhos. Sempre diziam que essas tentativas haviam sido infrutíferas em outras oportunidades. Venâncio ia, mas sempre voltava do mesmo jeito, semblante alegre, expressando-se gentilmente com as pessoas do bairro, como se fosse uma delas, como se sua situação nunca o incomodasse. Rodolfo, então, resignou-se, mas já se tinha feito simpático ao outro, que raramente deixava de vir falar-lhe. Venâncio sentia-se feliz quando Rodolfo, numa ou outra tarde, o convidava para, sentados no lado de dentro das grades que cercavam o sobrado, bebericarem umas doses de conhaque. O dono do sobrado encontrava ali, naquela relação incomum, uma certa paz de espírito, parecia-lhe pagar assim as dívidas por seus pecados. Mas não era apenas isso. Venâncio impressionava também pelas opiniões a respeito de imagens arquitetônicas que lhe eram mostradas por seu interlocutor. A Rodolfo, não era difícil imaginar que em alguma época Venâncio fora um escultor, um artista plástico ou algo assim.

Meses e alguns anos correram: sempre que possível, Rodolfo bebericava com Venâncio. As conversas banais do início da amizade tornaram-se a cada encontro mais densas. Era incrível para Rodolfo encontrar naquele pobre homem tantas ideias. Certamente, havia um passado diferente daquela miséria que o cercava agora. Isso intrigava-o bastante, mas o outro jamais permitia-lhe vasculhar sua vida pessoal. Rodolfo, então, planejou algo até certo ponto sensato: tentaria desvendar aquele mistério através de uma conversa cada vez mais íntima. Confiou a Venâncio muitos de seus pensamentos, de suas vontades e até mesmo de seus segredos. Um dia, mesmo que de modo superficial, chegou a falar-lhe de Gabi. A princípio, parecia-lhe uma boa ideia. Além de fazer parte de seu jogo, serviria também como um desabafo, pois a relação, embora prazerosa, inquietava-o constantemente. Mais tarde, contudo, considerou que houve um exagero e arrependeu-se da iniciativa. Suspeitou-se vítima de um tresvario. Logo, desconversou sobre o caso, mas seguiu atraindo Venâncio para seu jogo. Contou-lhe de seu casamento, de seus filhos, de seu trabalho, de sua família. Nos últimos meses, Venâncio chegava a entrar no local de trabalho de Rodolfo, onde prosseguiam com as conversas do dia anterior. Isadora, uma vez, e apenas uma vez, mostrou-se preocupada e perguntou ao marido se não haveria uma certa insensatez naqueles encontros. Ele fingiu não ouvir e Isadora, como era bem de seu feitio, não voltou ao assunto.

Há um ano, pela época do Natal, Rodolfo e Isadora saíram numa noite para comprar presentes para as crianças, os empregados, o pai e a mãe dele, que viriam para a ceia, e, claro, também para Venâncio, embora não imaginassem o que poderia satisfazê-lo. No fim, ajudados pelo tempo lá fora, afeito a fortes pancadas de chuva, lembraram-se de levar uma capa que poderia servir para cobrir-lhe em dias molhados. Ao retornarem, encontraram diante do portão da garagem o próprio Venâncio, com uma touca de lã enfiada na cabeça. Havia apenas uma garoa, mas ele estava encharcado. Propuseram-lhe que fosse até a área de serviço e se enxugasse, mas ele estava estranho naquela noite. Nem uma palavra sequer respondeu-lhes, dirigindo-lhes apenas um olhar enigmático. Rodolfo ainda tentou melhorar o humor do outro, entregando-lhe o presente. Pode ser útil ainda hoje, meu rapaz. Foi o que disse a ele, mas não houve qualquer resposta. Venâncio apenas desembrulhou o pacote e vestiu, desconfiado, a capa de couro. Rodolfo enfiou o carro na garagem e voltou à rua, mas Venâncio já não se encontrava mais ali. Antes de dormir, ainda puxou conversa com Isadora a respeito da reação inusitada do rapaz, muito distante do jeito festivo que o caracterizava. Talvez fosse a época, respondeu-lhe a mulher. Há pessoas que ficam assim, melancólicas, quando chega o Natal. Rodolfo concordou que essa poderia ser uma explicação razoável, mas não dormiu convencido. Havia algo mais. Venâncio estava estranho, muito estranho.

Quando o dia mal amanhecia, Rodolfo acordou como sempre o fazia ao primeiro clarão, antes mesmo que o sol apontasse. Desde a universidade, acostumou-se a levantar bem cedo. E assim o faria dali a pouco, quando abrisse de vez os olhos, afagasse Isadora ainda deitada ao seu lado e se espreguiçasse gostosamente como um atleta que costuma atender a todas as exigências do físico. Houve, então, um pesadelo, ou seria a mais terrível realidade? Rodolfo não estava em sua cama, muito menos ao lado de sua mulher. Rodolfo encontrava-se na rua, jogado num beco qualquer, numa região que ele não podia distinguir. Aos poucos, ainda sem saber se estava sonhando ou talvez delirando numa febre rebentada depois da noite chuvosa, tentou erguer-se. Na penumbra, sutilmente visitada pelos primeiros raios de sol, respirou um cheiro ruim, provavelmente vindo das latas de lixo que se enfileiravam abarrotadas naquele fim de rua. Escorou-se na parede onde dormira encostado e pôs-se em pé. Não, não podia ser um sonho. Tudo parecia muito real para um sonho. Deu dois passos à frente, a luz do dia já começava a iluminar o beco. Olhou para si mesmo e um frio subiu-lhe pelo espinhaço quando reconheceu em seu corpo a capa de couro que na noite passada ele dera a Venâncio. Imediatamente, vieram-lhe à cabeça ideias muito ruins. Lembrou-se de como Venâncio estava estranho, de como havia desaparecido misteriosamente. Temeu pela vida da mulher e dos filhos. O desgraçado poderia ter se escondido dentro da garagem, entrado no sobrado durante a madrugada e, então, de alguma maneira, talvez com um sonífero ou coisa parecida, conseguira dominá-lo, levando-o em seguida para aquele beco. Uma mistura de ódio e medo percorreu-lhe a alma, abateu-se sobre ele um terrível torpor, obrigando-o a encostar-se novamente à parede suja e úmida de um barracão de onde já saíam alguns caminhões carregados de frutas, verduras e legumes. Rodolfo distinguiu-os já em plena claridade que iluminava o beco de fora a fora. Então, aprumou-se outra vez, sem saber se o torpor o havia dominado por segundos ou minutos. Respirou fundo e procurou andar, precisava sair dali o mais rápido possível, encontrar um telefone e ligar para casa, ou melhor, para a polícia. Sim, não fazia ideia de onde estava, e a polícia poderia chegar muito antes do que ele próprio em sua casa. Andou depressa para sair do beco e, ao passar por um dos caminhões, ouviu do motorista aquela pergunta estarrecedora que o fez gelar-se por debaixo da capa:

Ora essa, de capa nova? E onde vai com tanta pressa, Venâncio?

A você que cumpriu até aqui o compromisso de ler-me, apresento-me: sou Rodolfo Bahnhof, marido de Isadora Gutierrez Bahnhof, pai de Emanuel e Lydia, amante de Gabi. Sou eu mesmo dentro de um corpo estranho, este de Venâncio. Estou agora diante de meu sobrado, vendo meus filhos, minha mulher e um homem que outrora fui eu entrarem no carro para sair a passeio. Olho para eles e não acredito que essa seja a realidade. A todo instante, sonho sair deste que é o mais medonho dos cárceres, mas a cada minuto a esperança esvai-se junto com minhas lembranças, que também vão se apagando dia após dia. Leio este papel que escrevi num passado recente e muitas dessas situações já me fogem à recordação. Sinto estar murchando dentro de mim toda a memória de Rodolfo. Serei mesmo um louco? Por comiseração a este pobre diabo em que me transformei, responda-me. Se me disser que sou louco, talvez uma última felicidade possa ainda abraçar-me. Se concluir que não, que nunca estive louco e que minha história é real, então enlouquecerei.

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