Maria Três Destinos – Texto de Otávio Nunes

“Maria, Maria, quem traz na pele essa marca
possui a estranha mania de
ter fé na vida”

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Maria Aurelina levanta cedo, faz o café, vai à padaria comprar pães,
acorda as crianças para ir à escola e prepara o café com leite delas.
Despede-se dos filhos e se encaminha ao tanque, onde quilos de roupa
suja a esperam. Na hora do almoço, refoga dois copos de arroz, pega na
geladeira a vasilha com o feijão cozido no dia anterior, frita um ovo
e come sozinha, na mesa da cozinha. Neste momento, escuta no rádio
"hoje é oito de março, Dia Internacional da Mulher". Verifica se a
comida que sobrou vai dar para a janta e volta ao tanque. Horas
depois, Aurelina enche três varais com roupas das crianças, do marido
e algumas peças suas.

À noite, cozinha alguns bifes de carne de segunda. Seu marido, com um
copo de cerveja na mão, reclama que a carne, que ele mesmo comprou,
está dura, parece borracha. As crianças comem quietas. E Aurelina,
finalmente, estatela o corpo no sofá para assistir à novela. Vai
dormir depois dos filhos e espera o marido voltar bêbado do bar onde
foi jogar sinuca e pif-paf. Dormem como dois tijolos na cama, lado a
lado.

Doutora Maria Beatriz veste seu conjunto bege, dá ordens aos
empregados da casa, escolhe o uniforme das crianças, toma um copo de
chá indiano, come duas torradas com geléia de amora e chama o
motorista. Num dia de extenso trabalho, ela participa de reunião com a
diretoria, pela manhã.

Na hora do almoço, enquanto degusta um filé de robalo com molho de
champingnon e salada de endívias chilenas, Beatriz conversa com o
presidente do banco a respeito de um empréstimo para expandir a
produção de sua fábrica. Liga duas vezes do celular para a secretária
a fim de saber se sua audiência com o ministro da Economia já está
marcada. Neste momento, a operadora telefônica emite mensagem no
aparelho informando que é oito de março, Dia Internacional da Mulher.
À tarde, ela atende quatro clientes, um secretário municipal e um
padre da Opus Dei.

Maria Vesga é sacudida em sua cama pela sua colega de cela. Enquanto
penteia seus cabelos num espelho velho e quebrado, Maria lembra de
seus filhos que ficaram sob a tutela do Estado, no Juizado de Menores.
Um deles, o menor, já foi adotado por uma família. O outro espera num
orfanato que sua mãe vá buscá-lo, um dia.

Come o pão com manteiga e bebe uma caneca de café frio, tão gelado
como as paredes de sua cela. No almoço, o bandejão oferece arroz,
feijão e carne moída. Maria Vesga, que adquiriu estrabismo na cadeia,
só lembra de três dias em sua vida. Quando a polícia a prendeu em
casa, quando o juiz pediu que ela se levantasse para ouvir a sentença
de doze anos de prisão e da última vez que viu seu casal de filhos.

No alto-falante, a diretora da prisão fala algumas palavras de consolo
e informa ser o Dia Internacional da Mulher. A partir de hoje, oito de
março, quem sabe, Maria Vesga acrescente mais uma data em sua
milimétrica memória.

E-mail: otanunes@gmail.com

Comments are closed.