Vinte contos

– Pai, os homens.

O primeiro alvor da manhã infiltra-se em meio aos sarrafos envergados pelo peso da lona, quando Justiniano empurra para o lado a colcha surrada e senta-se na beirada do catre. Como nos outros dias de muitos anos de seus sessenta e poucos, as dores nas costas erguem-se com ele. Mira a filha e por um instante toma-o um sobressalto. A menina, agora entre os quinze e os dezesseis, parece ter prosperado em suas carnes da noite para o dia. Dentro de um vestido maltratado, embora bem limpo e passado, perfaz-se em feições de mulher pronta, o colo abundante e as ancas fartas. Como se dera aquilo?

- Os homens vêm vindo, pai.

Juliana toma a mão direita do velho e beija-a nas costas.

- A sua bênção.

Justiniano lembra-se de Juliana ainda muito pequena; aliás, desde que veio ao mundo. Com três filhos homens já graúdos, ele e a finada Judite nem mais gostavam de dar à luz outra cria, mas a menina rebentou assim mesmo. Adiante dos quarenta, a mãe reagiu com vigor aos trabalhos do parto. Foram para frente.

- A água está quase pronta.

Juliana bandea-se para o outro lado da cortina de pano. O pai ouve o ruído do alumínio. Pela transparência do tecido que separa o quarto e a pequena cozinha, descobre o fogareiro aceso. Na sua mente, então, surge Judite à beira do fogão de lenha, numa manhãzinha qualquer daqueles tempos, fervendo um bule de água. O vermelhão frio vai esquentando e logo reflete o clarão das brasas, até disso ele se lembra. À mesa de madeira talhada com esmero, ele espera mastigando o pão moreno do forno de barro.

Depressa, ele fecha os olhos e num repente sucede-se um aroma prazeroso de café fresco.

- Está aqui pai, tome.

Abre os olhos, abrupto, com o cheiro ainda impregnado nas narinas peludas, e estira o braço à frente para arrebatar a caneca que Juliana lhe serve. Leva-a à boca, mas ali só há chá, só um chá que ele sorve sob a nostálgica fragrância.

- Bebe, que está quentinho.

Ele bebe. E enquanto bebe, vira-se para o lado. Ali, bem perto dele, abrem-se frestas que anunciam as galhadas de fora. Faz de conta que são pés de café. Pode mesmo vislumbrar os pequenos grãos vermelhos que juntos envergam os ramos na época da colheita. Se olhasse bem, seria capaz de ver escorrer, por entre os dedos compridos e enrugados que seguram a caneca de chá, o caldo daquelas sementes.

- Acabou, pai?

Justiniano devolve a caneca à filha. Está pronto para levantar-se de vez. Busca numa cadeira ao lado a calça e a camisa. As botas e as meias dormem embaixo da cama. Veste-se devagar. De uns anos para cá, acorda com vertigem dia sim, dia não. Acautela-se para não cair e dar mais trabalho à filha. Juliana vai lá fora um instante. Lava-se na bacia e renova a água para o pai.

- O senhor está pronto?

O sol já desponta em meio à neblina espessa daquela baixada, num dos extremos da cidade, quando Justiniano arqueia o espinhaço para vencer a porta de varas. Na rua em frente, dois ou três cavalos apressam-se aos maus tratos de um menino de pouca idade que os toca cheio de birras. O velho estaca entre o barraco e a bacia de água, e pisa na grama como se o fizesse anos antes, em companhia de Jacinto, o filho mais velho. Lá estão os dois no estábulo, escovando os animais, dando-lhes milho do paiol sempre cheio, aparando-lhes a crina.

- Quer mais água, pai?

Juliana veste-se lá dentro, aproveitando a saída do pai. Justiniano encontra-se com a vasilha de lata. Leva às mãos à água fria e faz com que ela escorra pelo rosto. Numa fração de segundo, seus pensamentos voam: Judite está bem ao seu lado, a toalha branca com bordados nas extremidades pousada sobre os braços. Mas não há tempo de apanhá-la. Muito depressa Judite se vai, assim como ocorrera dez anos antes. Tão depressa ela partiu, tomada por um desses ataques do coração, que não houve tempo de dizer-lhe adeus.

- Sobrou um pouco de chá, o senhor quer?

Volta, a passos lerdos, em direção ao barraco. Meia dúzia de crianças cruza a rua a caminho da escola. No meio delas, Justiniano avista Jerivaldo e Januário, os gêmeos que gostavam de ler e escrever. Os dois, ainda pequenos, seguravam os cadernos embaixo dos braços e tomavam o rumo. Aos poucos, a algazarra dilui-se. O sol começa a subir, a cerração cede pouco a pouco.

- Vamos deixar a lona?

O encerado preto tem dois grandes remendos e outros menores. Só a metade presta, e nela Justiniano fixa-se para lembrar-se dos amontoados de café nos terreiros. À tardezinha, quando a chuva ameaçava, ele e Jacinto esticavam as lonas.

- Acho que é besteira levar isso, pai.

Entra no barraco, curvando-se novamente e desta vez gemendo por causa da dor nas costas. Na noite anterior, Juliana havia juntado os alumínios e a pouca louça numa caixa de papelão que ela já içara sobre o tablado de madeira da cozinha. As roupas, os documentos e os panos tinham sido guardados num velho baú. Com a ajuda da filha, Justiniano arrasta-o para fora. Senta-se em cima dele para descansar um pouco do esforço repentino. Também agora é como se fossem noutros tempos. O baú, que fora do avô e depois do pai, segue firme. Foi sentado ali que Justiniano ouviu uma conversa que refrescava sua memória como um jovem de vinte anos. Não se lembra se fora o pai ou o avô, mas um dos dois recebera uma proposta para vender suas terras, ao que respondeu de supetão com uma negativa. Olha que são muitos contos, alertou o proponente. Nem por vinte contos, respondeu-lhe o antepassado de Justiniano.

- Acho que não esquecemos de nada, o senhor se lembra?

Recorda-se apenas dos vinte contos. Quanto valeriam vinte contos hoje? Dez anos antes, ao entregar ao banco sua propriedade a troco das dívidas que se avolumavam dia a dia, Justiniano também lembrou-se dos vinte contos. Se os tivesse, ou o equivalente, decerto resolveria aquela pendência. E tantas vezes mais vieram-lhe às idéias os vinte contos: quando perdeu um dos gêmeos por causa de doença grave e cara, quando o outro foi-se embora para bem longe buscar a sorte e ele nada pôde fazer, quando olhava para Juliana, que passava a juventude tão distante de uma boa felicidade, em todas essas ocasiões inquietavam-no os vinte contos. E agora, quando o caminhão encosta para carregar seus trastes, não há novamente como fugir de seu fantasma: os vinte contos.

- Os homens, pai.

Justiniano apruma-se e cumprimenta os rapazes que, vigorosos, rapidamente ajeitam os cacaréus sobre a carroceria. Ali também sobem pai e filha e juntam-se a outras famílias que seguem o mesmo rumo. Juliana faz o sinal da cruz, enquanto o pai, apertando o chapéu, apóia-se na madeira do caminhão para avistar pela última vez o barraco onde moraram quase um ano à espera do assentamento. É curioso, pensa o velho, tantos dias passados aí dentro e nunca me dei conta de como é triste morar assim. Os sarrafos tortos cobertos pela lona furada desaparecem na curva lá atrás, a poeira vem subindo.

Dali a meia hora, descem na área destinada às famílias recém-assentadas. O sol já vai alto, e Justiniano sente o suor escorrer por debaixo das mangas longas da camisa. Uma ferroada trespassa-lhe o peito de princípio e, se não rebusca um pouco da valentia de outras épocas, seria mesmo o caso de chorar diante de Juliana e dos outros. Há para ele algo com o que não se conforma: a morte do filho mais velho. Depois que perderam as terras, Jacinto era quem tinha o combustível para animá-los a buscar novos caminhos. Ainda jovem e robusto, nada era capaz de desanimá-lo, nem mesmo a falta de perspectivas no campo. Um dia, haveremos de ter um pedaço de chão outra vez, dizia ao pai. E foi nessa luta que Jacinto tombou. Afoito, sedento pela terra, viu-se baleado no meio de um conflito.

Ali, enquanto o pessoal do governo organiza a chegada dos sem-terra, Justiniano pensa com angústia em sua família de camponeses, nas terras que lavrara em todos os seus anos, nas colheitas, na comida farta à mesa, nos filhos criados com a força de seu trabalho, na companhia de Judite. Pensa com raiva nos últimos tempos, em que perdeu a mulher e os três filhos, dois para a morte e um para a vida. E, pensando assim, deseja abater-se naquele mesmo instante e jazer em cima daquela terra quente que ele não conhece. Mas, nisso, enquanto ensaia enfiar-se na barriga o punhal que sempre carrega preso a uma das botas, enquanto maldiz mentalmente sua vida estragada, sente a mão quente de Juliana apoiar-se em seu braço trêmulo pelas incertezas daquela hora. Vê Juliana atinar longe para aqueles campos prontos para serem lavrados e semeados, vê a filha suspirar aliviada ao certificar-se da existência de uma pequena casa de alvenaria, vê naquele rosto de mulher a vontade de viver e de lutar. Vê, num repente, surgirem diante de seus olhos as nítidas imagens daqueles que um dia se foram. Lá estão Judite e os filhos outra vez. Sim, eles estão lá, como se o esperassem para um novo começo. Até sorriem para ele. Assim é que Justiniano, sem os vinte contos ou nenhum outro conto, esquece o punhal, desafia as dores nas costas e, voltando-se para a casa que será sua, cinge à fronte o velho chapéu, e a passos largos e firmes lança-se à frente. Juliana, logo atrás, precisa correr, entre sorridente e admirada:

- O senhor não me espera?

Mas Justiniano, com o ímpeto de um feliz, mal pode ouvi-la.

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