10 papos com o escritor Lucius de Mello

1 Como nasceu a idéia de escrever um livro sobre a saga de judeus que fugiram do nazismo no Brasil?

Lucius – Foi logo depois que lancei a biografia da Eny. Na época a editora Valéria Motta – hoje não mais na Objetiva, mas roteirista da TV Record,(escreveu a novela Bicho do Mato), me sugeriu conhecer a história dos refugiados judeus quando perguntei a ela se tinha alguma idéia do que poderia ser o meu próximo projeto literário.

2 E a partir daí, você decidiu tocar o projeto?

Lucius - No início de 2003 fui conhecer a cidade de Rolândia, no norte do Paraná, e fazer as primeiras entrevistas. Não deu outra. A saga dos refugiados judeus me conquistou. E tenho certeza que vai conquistar os meus leitores também. Agradeço aos editores Pedro Paulo de Sena Madureira e Luiz Vasconcellos, da Novo Século, que acreditaram no projeto.

3 Qual é o principal tempero da obra? O que você pode adiantar?

Lucius – O título A Travessia da Terra Vermelha foi inspirado na Travessia do Mar Vermelho. Assim como os judeus que fugiram do faraó no antigo Egito, os refugiados do meu livro também fugiram, neste caso, da perseguição nazista. Como no Paraná, a terra tem esse apelido carinhoso de terra vermelha, achei legal fazer esse link.
Este novo livro é um romance histórico baseado numa intensa e minuciosa pesquisa realizada aqui no Brasil e na Alemanha. Como disse Santo Agostinho: “A memória é a casa da alma”. E acho que ele pode estar certo sim. Ao vasculhar a memória dos imigrantes e refugiados procurei entrar em contato com o que estava além dos fatos e das fotos; quis conhecer mais a fundo as cores da personalidade de cada um. E descobri verdades que poucos conheciam. Segredos de família, por exemplo, que muito contribuem para compreensão dos fatos históricos. Junto com o resgate e a reconstrução desse passado, fiz também um retrato psicológico dessas pessoas marcadas para morrer na Alemanha, mas que renasceram na fértil Terra Vermelha do Paraná. O principal tempero da obra são as histórias de resistência das pessoas que fizeram parte dessa saga. A lição de vida. Elas me ensinaram e devem ensinar aos meus leitores como a vida fica melhor sempre que valorizamos a esperança e o otimismo.

4 Seu primeiro livro é de contos. O segundo e agora o terceiro trilham outros rumos, de pesquisa jornalística inclusive. Você vai por essa estrada ou gosta de encruzilhadas?

Lucius – Prefiro chamar essa “encruzilhada”, como você diz, de espaço fascinante, para poucos e raros e símbolo da atual pós-modernidade ou realidade líquida como diz o filósofo polonês Zygmunt Bauman. Espaço que os acadêmicos costumam chamar de misteriosa fronteira entre a realidade e a ficção.

Fronteira tão freqüentada por nomes consagrados da literatura como Umberto Eco, por exemplo. Claro que não é de hoje que esse espaço instiga escritores e jornalistas. No começo da década de 60, Tom Wolfe, Truman Capote e Talese, também repórteres, nadaram em águas parecidas, as águas do New Journalism. Há também a meta-ficção que vibra em freqüência muito semelhante.

José Saramago também mergulha nessas águas. E vive dizendo: Ingênuos são os que acreditam que vivemos num “mundo real”. Medíocres os que se limitam a viver tentando manter o padrão ultrapassado que insiste em separar a realidade da ficção ou vice-versa. Deus é uma realidade? O Diabo é real? Quem garante que lá no alto, em cima das nossas cabeças não existe, literalmente, um céu de ficção? A democracia é uma realidade? Há quem diga, inclusive, que no atual mundo em que vivemos, onde quase todos e quase tudo são reféns do poder econômico, o ficcionista é mais fiel à realidade do que o jornalista. “Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos”, diz Amós Oz, o maior autor israelense vivo. Mais do que nunca, os paradigmas estão aí para serem quebrados. Reconstruídos. Repensados.

O mundo que os comerciais de televisão mostram para convencer o telespectador a comprar revela o real? O cartão de crédito, por exemplo... Ele é a maior prova de que muitos de nós vivemos num mundo que está longe de ser o mundo real que deveríamos viver...O mundo do consumo é o reino da ficção. Os shoppings centers, então... são castelos de contos de fadas... Não é por acaso que o filósofo polonês Zigmunt Bauman prefere chamar a nossa realidade de “realidade líquida”, ou seja, aquela que muda de forma com a mesma agilidade da água.

Shakespeare escreveu Romeu e Julieta, baseado num caso verídico. Marcel Proust criou sua obra maior Em Busca do Tempo Perdido contanto a sua própria vida e a vida dos seus amigos e parentes, mas trocando os nomes das pessoas. Grande parte da literatura universal bebe no “mundo real”.
Para escrever esse meu novo livro eu bebi na fonte da Memória e, com base em dezenas de depoimentos, documentos, cartas, diários, reconstruí o passado de mãos dadas com jornalismo e a literatura.

Nunca disse que escrevo livros reportagens. Não é esse o meu propósito. E não acho, como algumas pessoas pensam, que um estilo seja melhor que o outro ou que a literatura seja uma ferramenta menor que enfraqueça projetos deste gênero. Sinceramente acho que quem pensa assim não tem repertório intelectual para entender a proposta.

Considero a literatura um sacerdócio. Quando escrevo busco construir uma obra de arte. E muito séria. Tanto no caso da Eny (biografia romanceada) como agora com meu novo livro. E acho que o público em geral e até o mais intelectualizado e crítico têm entendido o meu propósito. Tanto que Eny chegou à final do Prêmio Jabuti. E A Travessia da Terra Vermelha ainda nem saiu e já me valeu o convite da professora doutora Maria Luiza Tucci Carneiro, para integrar a equipe de pesquisadores do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo. O qual já aceitei. Também fui convidado para lançar meu novo livro na OFF-FLIP deste ano em Paraty e no segundo semestre vou apresentar meu novo projeto em dois congressos acadêmicos: um na USP e outro em Buenos Aires, na Argentina.

5 Quem, aí dentro do Lucius, vence o duelo: o jornalista ou o escritor?

Lucius - Sempre quis ser escritor desde menino. Aos 11 anos comecei a escrever meu primeiro romance: a história de uma escrava que está inacabado até hoje. Quando fiz vestibular, escolhi jornalismo porque era a profissão mais parecida com a de escritor. Acho que o escritor vence esse duelo. Mas nem por isso seria capaz de matar o jornalista. O escritor precisa dele para trabalhar. O jornalista ajuda muito o escritor no ofício de escrever e vice-versa.

6 Afinal, Eny vai para a telinha?

Lucius – Tudo caminha para isso. Não estou autorizado a falar sobre o assunto, mas o que sei é que o projeto ainda está em fase de captação de recursos.

7 O bordel é um grande sucesso. Em que isso facilita sua vida de
escritor?

Lucius – Acho que a biografia da Eny me lançou no mercado nacional como escritor. Me levou à final do Prêmio Jabuti. Viajei quase todo o Brasil. Conquistei leitores, isso é muito importante. Até agora o livro já vendeu quase 40 milexemplares. Logo deve ser traduzido na Polônia. Espero que o meu novo livro agrade aos meus leitores tanto quanto Eny.

8 Quem vive na sua cabeceira?

Lucius - Proust, Joyce, John Banville, Saramago, Machado de Assis, Borges, Garcia Márquez, Cortázar, Goethe, Rilke, Clarice Lispector e Thomas Mann.

9 Para o jornalista: com o aumento dos canais noticiosos, incluídos os da internet, o jornalismo está melhor?

Lucius - Acho que melhorou sim dentro do possível, mas ainda não venceu seu maior defeito: continua exageradamente refém do poder econômico. Assim como todo o PODER no Brasil. E como as vítimas da Síndrome de Estocolmo, segue feliz nos braços dos seus seqüestradores.

10 Para o escritor: a produção literária no Brasil é muito farta para o público interessado ou quanto mais títulos melhor para o hábito da leitura?

Lucius – O Brasil ainda precisa descobrir o livro. O Pedro Alvarez Cabral da leitura ainda não chegou por aqui, infelizmente. E as televisões abertas que poderiam fazer o papel das caravelas e das ventanias, nunca colaboraram de forma realmente eficaz e até hoje não colaboram.

Lucius de Mello é escritor e jornalista, foi finalista do Prêmio Jabuti 2003 na categoria reportagem/biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro – editora Objetiva. Pesquisador do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação - do Departamento de História da USP, lança em junho A TRAVESSIA DA TERRA VERMELHA - romance histórico que conta a saga dos judeus alemães que se refugiaram no norte do Paraná para escapar do nazismo.

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