herself – Texto de Thiago Roque

era só escuridão quando ela abriu os olhos.

na verdade, decidira que era o fim da linha.

levantou do colchão velho e rasgado, arrastou a combinação calça de moleton cinza mais camiseta do iggy pop pela cozinha, acendeu uma vela, pegou caneta e papel. mas não sabia bem o que ia escrever.

afinal, nos cursos de etiqueta, não ensinam como uma dama deve se portar em um suicídio.

bocejou, tomou um copo com água. respirou fundo. e começou.

primeiro, pensou se tinha alguém a agradecer. não, não tinha.

então, pensou se tinha alguém a ofender. não, não tinha.

algum enigma para deixar, alguém que poderia ficar com peso na consciência, ex-namorado, cachorro, qualquer um?
nada.
ê, vidinha de bosta. tá mais do que na hora de se matar mesmo.

deixou a idéia do bilhete de lado (cá entre nós, bem blasé, né?). agora, o importante era pensar em como colocar um ponto final em 27 anos de reticências.

primeira opção: tiro. abriria a boca, colocaria o três-oitão dentro, puxaria o gatilho. simples - se tivesse um três-oitão.

segunda opção: se jogar do viaduto. mas já eram 3 da manhã, e aquela cidade de merda não tinha trânsito nesse horário. e caso se jogasse e não morresse? se sobrevivesse, iria subviver - e poderia ser pior do que já estava.

ok, próxima opção: overdose de remédio. tomaria um vidro de qualquer coisa que terminasse com o sufixo -ina e tava tudo certo. só que lembrou que era homeopata e, puta que pariu, só tinha floral e bolinhas de açúcar em casa - maldita seja a medicina alternativa!

começou a ficar angustiada - mas isso era bom, já que era sentimento de suicida.

faca! ela tinha uma faca em casa! poderia enfiar no peito, cortar os pulsos, rasgar a jugular, sei lá! contudo, o resultado poderia ser igual ao da segunda opção - com bônus de ter que fazer aqueles acompanhamentos psicológicos com gente mais doida do que ela. deixou de lado.

botar fogo na casa? poderia colocar os vizinhos do prédio em risco. queria um suicídio, não dezenas de homicídios.

também não podia se jogar da janela, morava no primeiro andar. se bobear, nem a perna quebraria.

bateu desespero - mas isso era bom, já que era sentimento de suicida.

correu para o quarto, pegou o livro do hemingway, deu uma folheada nas páginas, tinhas algumas passagens sublinhadas.

assistiu de novo ao filme da sofia coppola, deu um pause numas cenas, tentou refrescar a memória.

colocou no diskman aquele cd do inxs que adorava, tinha até suicide blonde (tá certo, ela era ruiva, mas sempre imaginou aquela música era sua...).

nada. nem uma fagulha sem-vergonha, miserável e molestada de idéia.

estava enlouquecendo - mas isso era bom, já que era sentimento de suicida.

de repente, viu que a chama da vela tinha se apagado, mas existia luz. sol desperto, mais um dia solitário anunciado na folhinha da geladeira.

conclusão: cansa esse negócio de ser suicida.

desistiu. voltou para o colchão rasgado, para sua escuridão, para mais um pouco de sono, para mais um pouco da sua vidinha pálida.

lembrou apenas que, à tarde, tinha horário no salão de beleza. sabia, ao menos, que ia pintar o cabelo de loiro.

se acordasse de madrugada, ao menos, a música seria sua, afinal.

E-mail: roque.thiago@hotmail.com

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