Abraços e santinhos

Aqui, quase todos se dizem inocentes. Mesmo quando admitem o crime, alegam, dentro de sua visão particular dos acontecimentos, circunstâncias que, ao final, são capazes de justificar quaisquer atos praticados. O sujeito tirou a vida da mulher, mas na verdade não queria fazê-lo. Outro roubou o banco e no corre-corre matou um cliente alheio às suas intenções, mas por culpa do revólver, que disparou. Conheço alguns que nada fizeram de grave para merecer o cárcere: estão cumprindo pena por engano. Também ouço insinuações sobre tramas maquiavélicas levadas a cabo em detrimento de inocentes.

Quem sabe onde está metida a verdade em meio a tantas bocas que a pronunciam com insistência? Quem pode descobrir a mentira? Um velho conhecido, advogado, disse-me uma vez que por mais que tivesse tentado durante toda sua vida colocar-se no lugar de um cliente na busca por uma melhor compreensão do caso, jamais empreendera êxito em tal iniciativa. E assim também é numa prisão: quem poderá um dia entender na plenitude de suas ações um desses homens, se tomar sua mente e todos os efeitos dela nascidos torna-se, mesmo por um instante, algo impossível?

Definições a respeito de um ou de outro, avaliações sobre seus comportamentos, conclusões e tudo mais só poderão chegar até a certa altura de um intrincado trajeto, só terão guarida nas conjeturas vazias e nas hipóteses baseadas em teorias das mais diversas. Nunca haverá exatidão, nunca se poderá deitar a cabeça no travesseiro com a certeza de que nenhuma injustiça foi cometida. Entretanto, tal é a complexidade do tema que nem mesmo o contrário se poderá pensar. A culpa e a inocência são companheiras muito próximas, cujas mãos não houve ainda quem as tivesse tomado por pura convicção. E nem haverá.

O crime em questão tem por protagonista um certo prefeito. Lá com seu pouco caso para a coisa pública, deu de ombros para as leis vigentes e tratou de impor suas próprias regras na condução administrativa. – Burocracia, burocracia, uma banana para a burocracia – ele costumava bradar pelos corredores do paço. Que ele um dia tivesse se apropriado do erário ou feito parte das corjas cujo principal alvo são as famigeradas comissões, eu não me arrisco a dizer. Algo assim foge ao meu conhecimento. Mas durante sua gestão não foram poucas as ocasiões em que desviou verbas de suas finalidades, aplicando os recursos onde lhe desse na telha ou nas áreas em que melhor lhe aprouvesse eleitoralmente. Eu tampouco saberia expor com clareza os motivos que o livraram dos maus lençóis nos quase oito anos de prefeitura.

Em minha cabeça, desfilam apenas conjeturas, mas prefiro guardá-las só mesmo para mim, embora essas hipóteses devam estar incluídas nas idéias de qualquer cidadão menos desinformado que se preocupe com os meandros da política. Posso dizer apenas que um dia as circunstâncias mostraram-se diferentes. Talvez a sorte o tivesse abandonado ou suas atitudes ultrapassaram limites toleráveis ou ainda, quem sabe, certos acordos sucumbiram. A verdade é que o caminho alterado das verbas que deveriam ter sido investidas em saúde, educação e saneamento básico foi descoberto. Assim, começaram as investigações.

É curiosa a conjuntura da política. Por uma simples arenga mal resolvida, um vereador meteu-se o traje empoeirado da retidão e tascou a denúncia em alto e bom som. Se alguém fazia vistas grossas para as atitudes pouco recomendáveis do prefeito, a partir do pronunciamento do parlamentar, ninguém mais poderia se manter alheio ao assunto. Lógico que todos os impropérios ditos no gabinete pelo patrão do executivo, ainda ao sabor dos nervos à flor da pele, tinham razoável fundamento. Dentre todos os vereadores, o denunciante talvez fosse o menos indicado para cobrar moralidade e coisas do tipo. – Passou a vida inteira debaixo de trapaças – queixava-se o prefeito.

Sua ira, entretanto, não mais poderia salvá-lo de um processo investigativo nem dos riscos de sofrer uma cassação e de responder criminalmente por seus atos. Cinco meses passaram-se em meio às turbulências típicas causadas pelo trabalho de uma comissão parlamentar de inquérito. A aproximação da análise do processo em plenário tornou insuportável o serviço na área administrativa da prefeitura. Nessas ocasiões, as pessoas olham-se desconfiadas, amedrontadas, como se carregassem nos ombros parte da culpa – e não seria isso mesmo?

Até que chegou o dia da sessão. Ecoaram na tribuna da câmara municipal os pronunciamentos indignados de vereadores. Os mesmos parlamentares que havia tempos assistiam ao sofrimento de pacientes nas filas dos núcleos de saúde, a deterioração do ensino público municipal e as doenças que se alastravam por causa dos córregos de esgoto que corriam a céu aberto, esses mesmos representantes do povo, que já sabiam de tudo nos bastidores sujos de uma política torpe, agora inflamavam-se diante de um microfone e das galerias lotadas de munícipes clamando por justiça. Num tapa, o prefeito teve seus direitos políticos cassados e o nome levado à justiça criminal.

Mais algum tempo e a decisão judicial incriminou o prefeito e diversos de seus assessores diretos, entre os quais fui incluído. Para resumir a sujeira toda, estou cumprindo pena em regime fechado. As notícias que me chegaram nestes dois anos e pouco são de que outros colegas também foram presos, mas já conseguiram a liberdade. Estou, sem dúvida, na pior situação de todas. Minha assinatura enfeitou muitos daqueles papéis levados à justiça. De minha parte, referendo conscientemente esta culpa. Sim, não sou inocente. Mereço pagar pelo meu crime. Quem colabora ou simplesmente toma conhecimento de um crime também torna-se criminoso se não o denunciar, eis uma terrível verdade que descobri tarde demais, não porque a descoberta pudesse evitar minha prisão, mas muito mais pelo fato de que, consciente desse erro fatal, uma nódoa de podridão que agora se instala para sempre em minha consciência poderia ser evitada.

Decerto que muito mais gente deveria estar enfiada a ferros por situações semelhantes, mas não me cabe recriminar a justiça, a polícia ou outra instituição. Como é costume dizer dos outros, refiro-me a mim mesmo: que moral eu tenho para um procedimento desse tipo? Ouço à noite os trincos correndo nas portas das celas e isso me faz parecer tão imundo que não tenho forças para me queixar deste sofrimento. Minha queixa só atinge a mim, ao meu comportamento, ao caminho que escolhi.

Em poucos meses, estarei fora, mas minha vida já se transformou. Quantas vezes não lamentamos por apenas uma hora perdida no trânsito a caminho de um fim-de-semana na praia? Eu não perdi horas. Foram anos. Pago aqui, como tantos outros deveriam pagar do mesmo modo, o alto preço da omissão. Enquanto isso, lá fora, cercado de novos assessores e mesmo de uns poucos vereadores que há alguns anos o desancaram e cassaram seu mandato, o prefeito caminha em meio à multidão, distribuindo sorrisos, abraços e santinhos.

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